Capa. Árvore vermelha sobre uma colina preta. Em seu tronco, há crânios e um machado. O céu atrás é laranja.
Capa O Túmulo da Valquíria, por Paulo Moreira

O Túmulo da Valquíria

Um guerreiro viking quer morrer, mas o que há além disso não é o que lhe prometem

Paulo Moreira
15 min readOct 31, 2021

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Sinopse

Skalla acorda soterrado pelos cadáveres da última batalha. Sozinho e ensanguentado, ele deseja morrer mais que tudo, para que as valquírias o carreguem aos salões dourados de Valholl. Nessa busca desesperada, acaba encontrando um bordo vermelho com uma inscrição terrível, cujas palavras podem mudar completamente a sua forma de enxergar o mundo.

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Skalla acordou soterrado por corpos e espadas. Um filete de sangue escorria de sua têmpora esquerda, onde o elmo amassado a penetrara, para pintar de vermelho os seus lábios arroxeados. O peso dos cadáveres e das armaduras prendiam seus braços ao chão. O guerreiro sentia-se dormente, impotente, derrotado.

Ninguém gritava mais na floresta. Só uma coruja piava perdida entre as folhas secas do outono. Tudo estava em perfeito silêncio enquanto o sol flamejante esticava as sombras das árvores. Ainda assim, Skalla mantinha o machado firme em sua mão. Logo alguém apareceria para o golpe de misericórdia, encontraria seu corpo vivo embaixo de tantos mortos, segurando o machado é claro, lhe apontaria a ponta da lança e acertaria em cheio o seu peito. Skalla já podia sentir seu coração inútil estourando. Aguardava por esse momento mais que tudo.

A coruja invisível foi embora, as asas sussurrando no alto das árvores. As folhas, sopradas pelo vento, deram voltas ao redor das vísceras e cabeças cortadas. Sombras inundaram a floresta, escondendo todo o sangue derramado. Apenas as copas das árvores resplandeciam rubras à luz do sol poente. Skalla se remexeu para diminuir a dormência do corpo e percebeu que os cadáveres não eram tão pesados quanto achava. Podia sair dali facilmente, mas seu pé esquerdo latejava tanto… Esperou mais um pouco a chegada do carrasco. Machado na mão.

Ele esperou, e esperou, e, estranhamente, ninguém apareceu para o golpe de misericórdia. Seria possível que nenhum guerreiro escapara vivo daquela batalha? Ninguém? Caberia a Skalla tornar-se o mensageiro de terrível tragédia?

— Piedade! Está doendo tanto! — gritou.

Nada ainda. Apenas os grilos responderam, metidos nos arbustos cada vez mais escuros.

Skalla então empurrou um dos corpos para ver melhor, sentindo pontadas nas costelas com tanto esforço. Com a mão esquerda livre, arrancou o elmo e deixou-o rolar entre os corpos. Seus ouvidos começaram a zunir, como se de repente houvesse uma infestação de cigarras em sua cabeça.

Era verdade. Apenas Skalla sobrevivera. Todos os outros jaziam mortos naquele mar de vísceras e sangue enquanto as folhas grudavam em seus rostos brancos. Todos seguravam espadas e machados. Que sorte a deles.

Ele ajoelhou-se, tomou apoio no cabo do machado para se levantar. Sorriu para os dois dragões briguentos que enfeitavam o aço da arma, mordendo a cauda um do outro.

— Pelo visto, somos só nós três.

Observou o céu. Cinco estrelas cintilavam geladas na imensidão vermelha. O pé esquerdo latejou, e Skalla quase caiu. Perdera dois dedos, ao menos isso.

— Talvez demorem pra aparecer. Mas virão, vamos aguardar.

Passeou manco sobre os cadáveres, com cuidado para não escorregar nas fezes dos companheiros. Coçou o nariz. A morte jamais tivera cheiro de flores, mas a vida após ela tinha o perfume das virgens. Ele só precisava esperar.

Lobos uivaram em algum ponto da floresta. Skalla cuspiu. Chegariam para o banquete mais rápidos que os corvos. Não fazia sentido morrer assim, então Skalla foi se afastando dos cadáveres. Que sorte a dos lobos.

O vento lhe trouxe o cheiro de comida, era estranho pensar em comer com tanta podridão ao redor. Mais estranho ainda era a realidade do cheiro que inundou a sua boca. Podia ser de alguma ave assada. Skalla procurou saber de onde vinha, descobriu a direção do vento e encontrou um filete de fumaça que escapava sobre os galhos secos das faias em direção ao céu, bem ao lado de uma colina. Só havia um bordo ali no topo, tão vermelho quanto o sangue escorrendo dos seus braços.

Talvez houvesse uma cabana de caçador mais atrás, assim, o guerreiro dirigiu-se à colina. Podiam comer um pouco antes de começarem a brigar. Skalla daria alguns socos, leves claro, apenas para garantir que o caçador realmente ficasse irritado. Mas faria questão de perder no fim, receber alguns cortes, e de estar com o machado nas mãos quando caísse. Talvez com isso conseguisse enganar a deusa de duas faces. Talvez.

A colina não era tão íngreme a ponto de derrubá-lo, mas os dedos arrancados e a cabeça tonta o levaram ao chão três vezes. No alto, o bordo refulgia à luz do sol poente. Assim que Skalla o alcançou, deixou-se cair de joelhos diante da árvore, com as duas mãos entrelaçadas sobre o machado. Queria respirar um pouco antes da luta. O vento sussurrou nos galhos. Folhas vermelhas se desprenderam, mil mãos ensaguentadas acariciaram o rosto do guerreiro, puxaram sua barba, fizeram cócegas em seu pescoço.

Alguém havia machucado o tronco do bordo gravando símbolos na casca. A árvore rangia como se ainda sentisse a dor da cicatriz. Mesmo com a cabeça girando, Skalla firmou os pés e se aproximou para discernir melhor os desenhos. Eram runas.

— Aqui jaz a última valquíria.

Uma lápide?

O vento sussurrou de novo, dessa vez trouxe o frio da noite consigo. Skalla arrepiou-se. As sombras tocaram seus pés, subiram em seu corpo, cobriram os braços, o rosto. A noite abraçou o guerreiro, gelou o seu sangue. Skalla tentou encontrar a cabana que lhe trouxera até ali, mas de repente estava tudo tão escuro que ele não podia enxergar nada a dois metros de distância. Até o bordo flamejante havia se apagado.

Skalla caiu.

Passos cochicharam na relva. Uma velha se formou nas sombras. Aproximava-se. Tateava o chão com um galho seco. Skalla apertou ainda mais o machado, não era hora de soltá-lo. A velha o alcançou, se agachou, seu rosto queimado chegou mais perto, tão perto que parecia querer beijá-lo. Sem forças, Skalla fechou os olhos e deixou a noite levá-lo embora.

Sonhou com vozes femininas cantando na escuridão. Sentiu o calor esticando sua pele enquanto o coração batia como tambores de guerra.

Ao abrir os olhos, percebeu que estava coberto. Os raios dourados da manhã atravessavam uma capa cinzenta que o protegera do orvalho. Alguém havia armado uma tenda improvisada sobre o seu corpo caído, a prendera no chão com gravetos e pedras. Mais ao lado, as brasas de uma fogueira ainda ardiam.

Skalla sentou-se, derrubando os gravetos e afastando a capa. Os dedos dos pés e das mãos estavam cheios de ataduras, e tatuagens brancas enrolavam-se em seus braços como serpentes. Ele encontrou um cajado nodoso perto das brasas, que usou para ficar de pé. Os dedos inexistentes ainda doíam, mesmo assim, Skalla deixou o bordo vermelho em direção ao sopé da colina.

Havia uma cabana lá embaixo, saía fumaça da sua chaminé. As paredes eram feitas de uma mistura de barro e madeira, cheias de besouros fedidos e zombeteiros. Skalla foi recebido por uma aranha gorda que passeava pela porta. Ele esmagou-a com a mão livre. Logo reparou um anel dourado em seu dedo, faiscando à luz da manhã.

A porta não estava trancada e abriu-se com o toque. Um vapor laranja e amargo abafava o interior, estimulando ainda mais a fome de Skalla. Ele entrou, os passos deslizantes sobre o piso de terra batida.

— Quer o machado de volta? — ouviu, uma voz pesada e cansada de mulher.

A velha da noite anterior cozinhava algo em uma panela preta de fumaça. Toda a cabana era na verdade apenas um cômodo, com o fogão à lenha servindo de lareira e uma cama de palha ao lado da porta.

— Eu acho que… esqueci — grunhiu Skalla, observando o cajado que o mantinha em pé. Havia esquecido mesmo, não era estranho?

Ele se aproximou mais da velha, passeando os olhos pela cabana. Um armário repleto de plantas murchas escondia, ou tentava esconder, uma rachadura que rasgava a parede do chão ao teto. Sobre ele, Skalla discerniu uma ponta de ferro cintilante.

A velha pigarreou, afastando os olhar da panela fervente: — Desculpe, senhor. Tive que usá-lo para pegar mais lenha ontem à noite. Precisei mantê-lo aquecido. Não tenho machado, veja bem. A madeira para meu fogo não passa de gravetos que consigo arrancar com esses meus braços sem carne.

— Onde o deixou, senhora?

A velha veio com passos calmos. Metade do rosto e do couro cabeludo era roxo e vermelho, e o olho queimado, no meio da cicatriz, mal se abria. Uma das mãos dela também estava ferida da mesma forma.

— Guardei no baú do armário.

Skalla dirigiu-se para o armário, mas logo a cabeça girou. Teve que segurar na parede para não cair de novo.

— Tenha cuidado! — a velha alertou, sorrindo com cinco ou seis dentes. — Seus dedos ainda estão feridos. A beladona diminui a dor, mas não os traz de volta. Deve estar confuso também.

— Beladona?

— As cinzas em seus braços são cinzas de beladona. Não, não as desmanche! Veja só, alguns símbolos já estão se perdendo… Vou ter que refazê-los daqui a pouco. Não quer comer? Sente-se aí em qualquer canto. Consegui um ganso ontem, só estou fervendo os ossos.

Skalla procurou rapidamente alguma cadeira, mas não havia nenhuma, então sentou-se no chão com as costas aquecendo a parede rachada. De fato, sentia o corpo tão quente quanto as chamas do fogão.

— Esse anel, foi você que me deu?

— Eu vou querê-lo de volta se não se importa. Não, não agora! Quando estiver se sentindo melhor. É ouro puro, vai impedir a gangrena.

— Senhora, eu… — Skalla tossiu, a garganta seca como papel. O que ia dizer mesmo? Que não precisava daquilo tudo? Que não queria a canja cheirosa da panela, mas morrer dignamente e ser carregado aos salões dourados de Valholl? Não, isso não fazia mais sentido, não com aquele bordo vermelho, aquela lápide de folhas sangrentas cravada na colina ao lado. — Muito obrigado por tudo. Não sei como retribuir.

— Pois eu sei! — A velha piscou o olho são. Pegou uma tigela de barro e encheu-a de sopa até a borda. — O inverno está chegando, não vou sobreviver sem fogo. Quando estiver melhor, corte lenha para mim.

A velha lhe entregou a tigela, os dedos brancos como ossos. Ele respirou fundo o aroma amargo. O sabor não era tão ruim, e quanto mais o líquido escorria garganta adentro, mais seus músculos cresciam, sólidos, redondos. Teve vontade de levantar-se, mas conteve-se e tomou toda a sopa. Não comentou nada, não precisava.

A velha sorriu com os poucos dentes. Pegou a tigela de volta e devolveu-a ao fogão.

— Agora você vai me ajudar.

Skalla fez que sim.

A velha lhe devolveu o machado e mostrou a porta. Não saiu com ele, permaneceu ali em sua cabana, as costas curvadas como se ela fosse um besouro.

Skalla deu a volta na colina e adentrou o bosque com o vento frio do outono queimando suas bochechas. Ele ainda sentia-se um pouco tonto, mas era capaz de manter-se em pé, seguindo adiante entre as árvores cada vez mais nuas e magras. O machado não pesava tanto quanto antes.

Ele desviou de seu percurso quando ouviu rosnados, de lobos com certeza, a festejarem naquele lago de cadáveres. Prosseguiu por arbustos repletos de folhas que não eram as deles, tendo cuidado para não se ferir nos espinhosos. Então parou ao encontrar um carvalho caído à beira de um riacho. Firmou o machado nas mãos e começou a partir a árvore.

Passou a tarde inteira arrancando a casca do carvalho, cortando galhos, separando toras. E quando sentia sede, bebia do riacho e logo voltava à labuta. Só reparou que anoiteceria quando o céu vermelho enegreceu. Agora teria que carregar a lenha e o machado para a cabana da velha com os dedos rígidos e calejados. Escolheu duas toras mais grosas e levou-as sobre cada ombro. O machado, deixou para trás, fincado no carvalho.

Escureceu completamente, mas ele sabia para onde ir. Seguiu o rosnado dos lobos, para desviar deles depois, e reencontrou a colina com o bordo vermelho. Entregou uma tora à velha curandeira e ficou com a outra. Ela lhe deu sopa, tirou seu anel dourado, para cuspir nele depois, e devolveu-o com uma piscadela marota. Ele voltou para cima da colina, acendeu uma fogueira com sua tora, arrumou a tenda improvisada e dormiu ali embaixo, protegido do orvalho da madrugada.

Setes dias se passaram assim. Enquanto as árvores ficavam cada vez mais secas, Skalla ficava cada vez mais forte. Todo amanhecer, a velha tatuava os símbolos nos braços e no peito do guerreiro, feitos de cinza de beladona e mel de abelha. Ele cortava lenha para ela, caçava alguns roedores e aves e só voltava ao anoitecer. Ela lhe dava sopa, cuspia em seu anel dourado, e ele deitava sob a tenda para dormir. Quase nunca trocavam uma palavra.

Até o último dia de outono, quando uma tempestade noturna flagelou as árvores semimortas. Skalla não pôde prevê-la, ou simplesmente não prestou atenção o suficiente nas nuvens altas e carregadas que cobriram o céu poente. A capa de sua tenda agitou-se nervosa antes de se desprender e ser carregada pelos ventos molhados. A fogueira apagou-se, e as copas das árvores faiscaram perante a luz branco-azulada dos relâmpagos.

Com lama dos pés à cabeça, Skalla bateu a porta da velha e pediu por abrigo. Ela concedeu. Pegou o anel de volta, pois ele não precisava mais dele, jogou-lhe água limpa, e refez as tatuagens dissolvidas pela tempestade.

— Você é uma bruxa? — ele perguntou, finalmente.

Ela tocou o peito esquerdo do guerreiro com os dedos ossudos mas delicados. Sobre o mamilo, desenhou uma pequena runa que Skalla não conhecia. Lembrava uma árvore.

— Não. Mas tive o privilégio de ser cuidada por uma.

Nem o bordo havia suportado a tortura da tempestade. Na manhã seguinte, estava sem nenhuma folha, como um pássaro despenado para o fogo.

A velha também sofrera. De repente, não conseguia mais andar muito. Por compaixão e pelo abrigo, Skalla trazia água do córrego ao lado do carvalho caído. Mais tarde, o frio passou a se adensar em névoas toda manhã, e as pernas dela doeram com mais frequência. Houve dias em que ela mal se levantava da cama de palha, e Skalla teve que caçar, trazer lenha e água, acender o fogo, preparar a comida…

E quando o inverno apagou tudo ao redor com sua brancura, Skalla não teve coragem de deixá-la só. A velha hospitaleira não mexia as pernas. Reclamava de cobras invisíveis que picavam seus pulsos a cada batida do coração. E embora continuasse a comer normalmente, sua pele se recolhia sobre os ossos. Os dedos ossudos ficaram espinhosos, as veias engrossaram e partiram-se, as órbitas dos olhos se afundaram, os cabelos finos que tinha foram caindo, os fios frágeis e brancos como a neve lá fora.

Como Skalla não precisava mais das tatuagens, poupou a cinza de beladona para os pulsos doloridos da curandeira. Não aliviava muito. Ela pediu que buscasse casca de salgueiro, em um jarro no armário, mas assim que o guerreiro colocou um pouco do pó nas mãos dela, seus dedos incharam e sangraram. Assustado, Skalla jogou o jarro fora. E a velha não comeu mais nada depois disso.

Dias depois, alguns animais começaram a sair para suas andanças na floresta, prenunciando o fim do inverno. Skalla contava que as dores da velha diminuíssem com a chegada do calor, mas não havia nenhum sinal de que isso realmente aconteceria. Ela pouco se movia em sua cama de palha.

O guerreiro então puxou a cama para mais perto do fogo, ansioso por qualquer movimento daquela que salvara-lhe a vida. No processo, chocou as costas contra o armário, que oscilou como uma cadeira de balanço. Um objeto pontudo caiu lá de cima, cintilante à luz das chamas. Skalla parou e largou a cama para recolocá-lo no lugar. Dessa vez, foram os seus dedos que sangraram.

Uma ponta de lança, branca como a lua cheia, afiada como navalha.

Skalla não perguntou nada à velha. Devolveu a ponta de lança a seu devido lugar e voltou a puxar a cama, deixando-a bem ao lado do fogão crepitante. Ao sentir o calor, a velha se revirou um pouco, respirou fundo, e relaxou. Ficou imóvel, os olhos fechados voltados ao teto e as mãos unidas sobre o peito. Skalla podia escutar sua respiração, mais suave, mais paciente.

Naquela noite, não houve neve. Ainda assim, o vento uivava cortante e gelado na porta da cabana. Sentado no chão de terra batida, Skalla tomava a sopa de esquilos que a velha recusara. As chamas do fogão eram a única luz na cabana, quem sabe no bosque inteiro. Desenhavam sombras de gigantes nas paredes, que entretinham o guerreiro com suas cabeças deformadas e braços compridos. Com os olhos vermelhos, Skalla notou que uns portavam espadas, outros lanças e archas. Marchavam tão juntos que os ombros chegavam a se tocar, seus corpos se misturavam em um só, e agigantavam-se ainda mais.

— Chegarão em algum dia, em algum inverno, mas chegarão.

A voz era um mero sussurro seco.

Atento às sombras, Skalla mal reparou que a velha ao lado havia se sentado e que também contemplava os gigantes, o olho redondo faiscando com as chamas do fogão.

— Serão gelados, muito gelados. Pisotearão todos com pés de gelo. Esmagarão todos com clavas de gelo. E depois fogo, só fogo, em todo corpo. E depois cinzas, só cinzas, em todo lugar.

Ela espiou o fogo e fechou o olho com o brilho forte das labaredas. Passeou a mão queimada vagarosamente pelo rosto, tocando as próprias feridas.

— Tentamos impedi-los, mas vieram aos montes. Perdi cinco irmãs, mas a mais velha ainda estava conosco. Ela reparou a chegada das chamas, uma estrela dourada no início, uma rosa rubra desabrochando logo depois. Linda e terrível. Nossa irmã mandou-nos derrubar a ponte. Derrubamos. Durante a tarefa, ela se queimou, eu também me queimei, tudo se queimou. Menos aqui. Aqui ainda há verde. Você me entende, meu jovem guerreiro?

Skalla levantou-se, as pernas trêmulas de tanto ficar sentado. Tocou o rosto dela, dedos calejados ásperos tocando rugas queimadas ásperas.

— Se não está mais lá, não precisa sofrer como lá. Poupe a voz. Eu entendo. Eu entendo tudo.

A velha baixou a cabeça sobre aquela mão calejada, como um gato pedindo carinho. Parecia sorrir.

— Que bom, meu jovem guerreiro.

Ela dormiu depois disso.

Na manhã seguinte, Skalla subiu a colina carregando troncos e pedras afiadas. Agachou-se sob os galhos nus do bordo e começou a cavar, a inscrição no tronco tão clara quanto o céu sobre ele.

Aqui jaz a última valquíria.

Ele não jogaria uma tocha no telhado da cabana, não banharia com óleo o corpo sem vida da velha. Não, ela já tinha se queimado de mais. Em vez disso, devolveria seu corpo à terra para que ela repousasse no ventre da mãe, onde o calor era suave e silencioso.

Após enterrá-la, Skalla descansou por mais dois dias antes de abandonar o túmulo da colina e partir para casa, onde entoaria canções de gelo e fogo, canções de gigantes vivos e de valquírias mortas. O machado, deixou para trás, fincado na porta da cabana.

Não precisou esperar que o bordo florescesse, ele sabia que floresceria. Ao toque delicado da primavera, botões amarelos despontariam dentre seus nós, atrairiam abelhas com seu cheiro açucarado. O bordo cresceria, cada vez mais verde, cada vez mais vivo.

Todos os direitos de O Túmulo da Valquíria reservados a Paulo Rogério Moreira da Silva, 2021.

Imagem e arte da Capa: Paulo Rogério Moreira da Silva, 2021.

Essa é uma obra de ficção. Nomes, personagens, organizações, lugares e situações são frutos da imaginação deste autor ou usados como ficção.

Qualquer semelhança com a realidade ou fatos reais é mera coincidência.

Todos os direitos reservados.

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Paulo Moreira

Brazilian pharmacist in loved with History, Fantasy and Ecofiction. Author of The Blood of the Goddess. I write about nature in poems and fantasy stories.