A Garota de Laço Vermelho, por Paulo Moreira

Paulo Moreira
9 min readDec 9, 2020

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Os tijolos do templo flutuavam como poeira. Santiago foi passeando devagar, os sapatos silenciosos cheios de pó. A porta pesada havia se partido em sete pedaços. A luz do sol resplandecia no que sobrara da rosácea, criava um lago de estrelas coloridas.

Santiago respirou fundo e tossiu quando a sujeira inundou seus pulmões. Helena estava agachada no altar do templo, ou melhor, do que restara dele. Os pés da moça afundavam na areia.

O rapaz se aproximou, empurrando os tijolos voadores. Eles se dissolviam a seu toque.

— Gabriel veio? — Helena perguntou, erguendo-se com as pernas doloridas.

Santiago tirou os óculos escuros e olhou para os destroços da entrada. Gabriel estava ali, apoiando o peso do corpo na bengala. Os cabelos brancos reluziam como sua pele. O velho levou a mão à boca e esticou o dedo indicador em seus lábios.

— Não. — respondeu Santiago. — Não veio.

Helena suspirou, chutando a areia.

— Vê alguma coisa diferente.

— Diferente? — Santiago sorriu. Observou os pedaços do templo deslizando ao seu redor, o pó escorrendo a seus pés. Mas Gabriel balançou a cabeça.

— Não. Só destruição. O que houve aqui?

— Vamos descobrir. — Ela enfiou as mãos nos bolsos, preocupada. — Um monge sumiu. Ele veio meditar ontem à noite, sozinho. Não voltou pra casa. E eis o templo!

Ela espiou os destroços da entrada.

— Tem certeza que não vê nada estranho? — Voltou a questionar.

Santiago viu Gabriel dar as costas e deixar o templo. O rapaz manteve-se firme, embora intrigado.

— Não, fique tranquila. Gabriel me avisaria se houvesse.

Os dois saíram das ruínas, um ao lado do outro. Ainda era manhã, mas o sol já esquentava o ar ali fora. O bosque barrava a passagem do vento, mas pelo menos sombreava o local. O templo, todavia, continuava frio. Santiago procurou Gabriel, mas não o encontrou.

— Então, acho que você pode voltar pra casa… — pigarreou Helena, encarando os policiais sobre os destroços. — Quer dizer, se Gabriel não apareceu, não deve ser nada.

— Entendo. — concordou Santiago. O caso chamava sua atenção, e principalmente o fato de Gabriel querer manter tudo em segredo. Mas o rapaz passara a noite em claro e ansiava por uma soneca despreocupada sobre o sofá. Helena lhe manteria informado. — Se precisar, pode ligar a qualquer momento.

— Sei disso. — ela tentou sorrir. Segurou os cotovelos e respirou fundo de novo. — Obrigada. De verdade.

Santiago a olhou nos olhos. Para ele, sorrir era mais fácil.

— Está tudo bem, Helena. Esqueça o que aconteceu. Ele não vai mais lhe ferir.

— Eu sei. Mas… Bom, vá logo. Tire essas olheiras que não é nada charmoso.

Santiago colocou os óculos escuros e abraçou as sombras do mundo material.

Seguiu em direção ao seu prédio. Atravessou correndo as três faixas de pedestres, nas três vezes poderia ter sido atropelado. Tropeçou em um saco de lixo atrás do restaurante francês. Desviou de um ciclista. A culpa disso tudo não era dos motoristas, ou do empregado desleixado do restaurante que não sabia onde colocar o lixo, muito menos do senhorzinho atleta na bike. A culpa era do sono que dava vida própria às pernas de Santiago.

Ao virar a segunda esquina, o sono começou a ceder lugar a uma nova sensação. Não era desconhecida, muito pelo contrário. Alguma coisa o observava, ele sentia. Havia alguém ali, em algum lugar.

Ele permaneceu andando. Sentira isso tantas vezes na sua vida que já estava acostumado. Tratava-se de uma criança apenas, ele sabia. Se revelaria naturalmente em alguma hora.

Aconteceu quando Santiago chegou em seu prédio. Viu de relance a forma de uma menina mais atrás, o vestido roxo dela não passava dos joelhos. Seguiu-o até mesmo quando o rapaz subiu as escadas em direção ao apartamento. O rapaz deixou a porta aberta e jogou-se no sofá.

— Pode entrar, se quiser.

Santiago colocou os óculos na escrivaninha e massageou as têmporas. A menina foi entrando, hesitante. A pele era tão branca quanto cal, e uma fita vermelha prendia seus cabelos lisos.

— Tudo bem, fique à vontade. Qual é seu nome, menininha?

Ele tentou ser simpático, mas estava cansado demais. A menina o encarou como um gatinho. Tinha os olhos puxados dos japoneses. Não disse qualquer coisa e parou no meio da sala. Abaixou a cabeça.

— Entendo. — Santiago resmungou. Agarrou a agenda e a caneta na escrivaninha e levantou-se para entregar a menina. Ela segurou, ainda hesitante.

Começou a escrever.

M-E-D-O.

Santiago se abaixou para enxergar melhor.

— Está com medo? — perguntou, com um sorriso.

A menininha moveu a caneta de novo, devagar, paciente.

N-A-O.

— Tudo bem, então. Quer me dizer alguma coisa? — Santiago questionou, ainda forçando o sorriso.

Ela o ignorou e continuou a brincar com a caneta. Riscou o “não”. Rabiscou novas letras.

V-O-C-E

Santiago caiu no sofá outra vez. O trajeto até o apartamento fora tão cansativo que as pernas latejavam.

— Oh, eu? Não. Não estou com medo. Devia estar?

Bochechou.

Fechou um olho.

Mal deu tempo de fechar o outro, a menina já havia sumido.

Acordou algum tempo depois para arrumar suas coisas. O pescoço estava rígido como madeira, as costas também doíam, então teve que caminhar dobrado até o outro cômodo.

A sessão anterior o esgotara. O candelabro estava virado sobre a mesa, as velas, caídas, o tabuleiro ouija tentando se equilibrar na beirada. Santiago pôs o candelabro em pé, levantou as velas e guardou o tabuleiro na maleta.

A luz do sol piscava entre as persianas da janela, avisando-o das horas. Olhou o relógio em seu pulso. 12:35; dormira cinco horas inteiras, era isso mesmo?

A barriga roncou para confirmar o tempo passado. Santiago dirigiu-se à cozinha beliscando o pescoço dolorido. O armário estava aberto, a geladeira também. Tudo fora revirado. Cascas de ovo no chão, maçãs mordidas na fruteira, a caixa de leite sem uma gota.

Santiago deu de ombros e decidiu ir às compras. Pegou a agenda sobre a escrivaninha e saiu do apartamento. Abriu o celular e ligou para a Matriarca, procurando a chave esquecida em algum bolso da jaqueta.

— Olá, meu filho, como vai?

— Vou bem, Matriarca. Liguei para tirar um dúvida.

— Oh, sim, Santiago. Sua voz está diferente. O que deseja saber? Gabriel não está ai?

— Não, não. Ele anda sumido. Tive uma sessão ontem à noite e ele não apareceu. Foi complicado, precisei recorrer ao tabuleiro ouija.

— O tabuleiro? Cruzes, meu filho! Já se banhou?

— Ainda não, não tenho as ervas aqui… A questão é, você já se esbarrou com um desencarnado com fome?

Santiago finalmente achou a chave.

— Fome? Não, nunca. É comum as emoções humanas os desorientarem, mas funções fisiológicas, não faz sentido, sabe?

— Pode perguntar para a Isabela?

Santiago aguardou um momento. No mesmo instante, a menina correu para dentro do apartamento, batendo a porta bem no nariz do rapaz.

— Quer ficar aí, garotinha, então fique. Santiago sussurrou ao trancar a porta.

A matriarca prosseguiu: — Ela não quis responder. Estranho… Mas é uma menina, não é? Pode ser que esteja bastante confusa.

— Era só isso mesmo, Matriarca. Muito obrigado. — agradeceu Santiago.

Tirou a agenda de outro bolso e começou a folheá-la. Despediu-se, fechou o celular e olhou melhor as páginas riscadas. Não ficou nem um pouco surpreso com o que encontrou.

F-O-M-E.

Demorou para fazer as compras e limpar a casa. Quando a noite caiu, estava mais quente que o habitual, então, Santiago empurrou o sofá para o quarto da sessão e deixou a janela aberta.

Assim que ele sentou-se para dormir, a menina saiu do armário, bem devagarinho, e veio em sua direção. A cabeça baixa escondia os olhos da cor do abismo.

— É só você! — suspirou Santiago, relaxando as costas no sofá. — Tudo bem?

Lembrou-se da agenda, mas não estava disposto a ir pegá-la.

— Aconteceu alguma coisa? — Era inútil puxar conversa com espíritos, eles nunca falavam com ele. — De onde você veio, menininha? Sabe que pode me mostrar, não sabe?

Ela esticou o braço para segurar a mão do rapaz.

Santiago sorriu.

— Então, mostre-me, menina!

Com apenas um toque daqueles dedos pálidos, o rapaz ficou cego. Ele ofegou. Alguma coisa dava voltas em seus músculos, apertava, queimando cada vez mais.

— Socorro! — gritou. Os olhos vendados só distinguiam o vermelho. Sentia-se pendurado pelos braços. Sufocava-se.

— Tem alguém ai?

Em seus ouvidos, corvos gralhavam desesperados. Santiago queria respirar, mas alguma coisa pressionava seus pulmões.

— Tem alguém aí? — gritou mais forte.

— Cale a boca! — ouviu, uma voz feminina. — Cale a boca! Cale a boca! — repetia.

— Você, me ajude, por favor! — No mesmo instante, um dos seus olhos se abriram. O mundo não era tão vermelho, mas era negro. Milhões de corvos voavam velozes como abelhas, escondiam uma luz.

— Fique quieto! — a voz respondeu.

— Me ajude, eu imploro! Você pode me ajudar!

— Cale a boca!

Santiago silenciou-se, aflito. Mas a voz prosseguiu.

— Me ajude, monge. Apague as vozes, por favor. Dói demais.

Outra voz, calma, rouca.

— Apenas relaxe. Respire. Concentre-se. Não o escute. Você pode vencê-lo.

Os braços de Santiago se libertaram. Ele caiu no chão arenoso.

— Reúna tudo em seu peito, depois, expire.

A luz aumentou. Santiago dirigiu-se a ela. Viu as fitas que o mantiveram preso bailando soltas entre os corvos. Eram vermelhas.

— Você não é ele. Jamais será.

Os corvos se afastaram e abriram um caminho, giraram ao redor do brilho como mariposas. Santiago passeou entre eles, despreocupado. Penetrou a luz.

Lá dentro, era laranja. Velas perfumadas iluminavam o cômodo. Um homem de pernas cruzadas resmungava. Ao vê-lo, Santiago sentiu fome.

E de repente, tudo virou pó.

Assim que a visão acabou, a garota de laço vermelho saltou para dentro do armário. Santiago correu para a cozinha. Devorou tudo o que comprara mais cedo. E vomitou tudo em seguida.

Na escuridão, entre as portas semiabertas do armário, os olhos da menina resplandeciam.

Mal o dia amanheceu, Santiago desceu correndo as escadas. Tinha que encontrar-se com Helena o mais rápido possível. No entanto, logo ao chegar ao térreo, uma menina reluzente o parou. Vestia branco, e foi subindo os degraus com vários vultos reluzentes ao seu redor. Era Angelina.

Gabriel também viera, sempre apoiado na bengala. Um rosário de prata piscava em seu pulso. Ele esticou o braço e virou o corpo, mostrando a saída. Santiago só foi capaz de obedecer.

Quase foi atropelado de novo ao cruzar a rua. Virando a esquina, o celular tocou.

— Helena! Graças a Deus! Estava indo mesmo falar com você.

— Oi, Santiago! Gabriel apareceu? Vamos precisar dele.

— Sim, finalmente. Descobriu alguma coisa?

— Descobrimos. O nome do monge sumido é Takuan. E não só ele sumiu, uma menina também, amiga dele. É justamente por causa dela que te liguei. Você acha que consegue achá-la? Eu falei com os pais dela, e eles me entregaram um objeto que ela gostava muito, sabe… Com ele, você…

— Espere, Helena! É uma fita? Vermelha? Que prende o cabelo?

— Não, por quê? É um relógio do Mickey…

— Essa menina é asiática? — Santiago prendeu a respiração. Alguma coisa começava a apertar seu peito.

— Não. Caucasiana. O que aconteceu, Santiago? Você viu alguém?

— Vi. Não sei, mas Gabriel queria manter tudo em segredo…

A voz falhou. Santiago caiu de joelhos, a mão no peito. Sentia o coração penetrado, cortava como vidro. Fechou o celular. O ar esfriou. Um estrondo. Pessoas passaram a gritar, vieram correndo desesperadas e quase pisaram o rapaz.

Santiago levantou-se, ainda apertando o peito, e correu de volta. Ao virar a esquina, avistou o seu prédio, ou o que restara dele. Destroços, poeira, fumaça. O encanamento estourara, a escada mal se mantinha em pé, as paredes desabavam.

Santiago correu e escalou as ruínas do prédio, tossindo com tanta poeira. O ambiente gelado doía ainda mais em seu peito ferido. Tijolos e madeira flutuavam, dissipavam-se a seu toque.

No centro, a porta arrancada do armário afundava em um círculo de areia. E ali em cima, pregado no ar, um rosário reluzia. Santiago tentou alcançá-lo, mas ele se despedaçou na ponta de seus dedos, mil estrelas de prata.

O rapaz olhou ao alto, os olhos chorosos. No céu, solta entre as nuvens, uma fita vermelha tremulava.

Incólume.

Livre.

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Paulo Moreira

Brazilian pharmacist in loved with History, Fantasy and Ecofiction. Author of The Blood of the Goddess. I write about nature in poems and fantasy stories.