Uma Floresta de Talentos

Paulo Moreira
5 min readJul 31, 2019
Três borboletas brancas sobre flores azuis
Photo by Karina Vorozheeva on Unsplash

“Havia uma floresta nos limites do reino onde viviam os mais belos animais da natureza. Nesse refúgio pacífico e monótono, as borboletas dançavam no ar com orgulho de suas asas multicoloridas e os pássaros cantavam majestosamente o dia inteiro. Vaga-lumes passeavam à noite com a luz de seus corpos a iluminar a escuridão da floresta. Tudo nesse lugar era belo e encantador de se ver. Mas nesse lugar, havia também uma pequena lagarta decrépita que rastejava cabisbaixa na relva.

Acontece que essa lagarta não era bela e cheia de talentos como os outros seres da magnífica floresta. Ela não tinha a voz maravilhosa dos passarinhos canoros, a luz dos vaga-lumes não habitava seu corpo mole e as asas coloridas das borboletas ainda não haviam brotado em suas costas. Por isso, ela invejava todos os outros animais e os observava escondida nas folhagens à procura do que os deixara tão belos e contentes. Afinal, eles eram belos, e por isso, alegres, enquanto ela era feia, e por isso, triste, pensava a lagarta.

Aquele pequeno verme tentara cantar como os pássaros, mas sua voz era mais rouca que a de um corvo. Tentara pintar o corpo com musgos cintilantes mas eles a deixaram queimada de alergia. Comera várias gramas de folhas para acelerar o crescimento e ganhar as esperadas asas, mas elas não vieram. Por isso, agora a pequena lagarta desprezível observava os seres da floresta, à procura do que os tornara tão belos.

Foi assim que descobriu que a cantoria dos pássaros que ouvia não era tão bela assim. Na verdade, as aves cantavam tão alto que os melhores cantores não eram ouvidos, pois esses cantavam baixinho, sozinhos nas árvores. Viu que não importava que ela soubesse cantar pois sempre haveria aqueles pássaros os quais, mesmo não cantando tão bem, iriam impedir que sua voz fosse apreciada. Assim, não os invejou mais e desistiu de cantar como eles.

A lagarta também não gostou de como os vaga-lumes brilhavam daquele modo. Soubera que a cada semana um deles subia ao mais alto dos céus e roubava o brilho de uma estrela esquecida para depois repassar para os outros. Eles diziam ao pobre astro: Você não precisa de mais luz. Ninguém olha mais para você. Então deixe-nos fazer um uso melhor para seu brilho. A lagarta agora sentia nojo, sim, nojo dos vaga-lumes que, para serem tão bonitos, utilizavam meios sórdidos como aquele sem se importarem com a desafortunada estrela.

É triste dizer que a pequena lagarta também não viu nada mais de invejável nas suas companheiras borboletas. Embora suas fantásticas asas houvessem nascido de seu corpo, fossem parte delas, de sua natureza, e elas não tivessem usado meios sórdidos para obtê-las, a lagarta deu as costas para elas. Apenas o fato de terem nascido para ter asas haviam-nas deixado preguiçosas e orgulhosas, mesquinhas e julgadoras. Julgavam todos que apareciam por perto. Riam dos que labutavam em busca de um sonho.

Sim. Todos eles são felizes, disse a lagarta. Eu quero ser feliz, mas não será como eles que ganharei minha felicidade.

E então assim, decidida a buscar a felicidade que tanto almejava mas através de meios nobres, a vil lagarta saiu mundo afora para longe daqueles animais. Se esse mundo é tão ruim para fazer com que nós sejamos felizes apenas desse modo, eu vou para um outro e tentarei ser feliz do meu jeito. Mas uma lagarta não anda muito, por isso não conseguiu nem sair da floresta em que vivia. Ficou morando num arbusto escuro no limite da mata onde tinha folhas suficientes e espaço de sobra para cantar, brincar e fazer o que quisesse. Se fosse esse um conto de fadas, eu diria que ela encontrou um parceiro e que foram felizes para sempre. De fato, ela tentou, no entanto, era feia e afastava todos com os caroços que a alergia lhe causara. Mas ali, naquele arbusto, dentro de um pequeno buraco entre as folhas, a lagarta era feliz, mesmo sozinha, sem uma voz agradável, sem luz e sem asas. É uma pena dizer que mesmo envelhecendo, em nenhum momento sequer um vestígio de asa apareceu em seu dorso. Mas ela não precisava disso para rir do raiar ao pôr-do-sol.

E então, a pequena princesinha do reino ficou enferma. Seus médicos não podiam curá-la e a morte da frágil e adorável criança era inevitável. Todo o povo caiu em prantos com tal notícia e o rei, antes de tudo um pai aflito e quebrantado, pediu ajuda ao reino para que o último desejo da menina fosse realizado. Tal desejo era justamente dançar em uma festa à luz de vaga-lumes com um vestido de borboletas e pássaros bardos cantando para ela. Assim, todos os homens foram capturando vaga-lumes para compor as lâmpadas, empalhando borboletas para o vestido e engaiolando pássaros para a música. Logo chegaram à floresta encantada.

A lagarta, morando nos limites e vendo a chegada dos homens, correu para avisar os outros do que estava por vir. Mesmo odiando-os pelo que faziam ou haviam se tornado, se preocupava com eles pois tinha um bom coração e não desejava um destino tão cruel para tais seres.

Cantem mais baixo, passarinhos, que lá vêm os homens maus! Parem de brilhar, vaga-lumes que os homens maus vêm chegando! Arranquem as asas, borboletas, que os homens maus se aproximam! gritava ela, com sua voz rouca. Ninguém deu ouvidos. Os pássaros sempre haviam cantado tão alto que ficaram surdos e só eram capazes de ouvir seu próprio canto. Os vaga-lumes não tinham como devolver o brilho que haviam roubado e se o fizessem, seriam nada mais que moscas nojentas e perdidas. As borboletas, ah! As borboletas… Repararam tanto no corpo esguio e asqueroso da lagarta que ainda riam dela mesmo nas redes dos caçadores.

E a lagarta, feia como era, passou imperceptível aos olhos dos homens. E sobreviveu. Assim como outras lagartas escondidas na relva. Assim como os pássaros que cantavam baixinho na solidão. Assim como vaga-lumes que não quiseram roubar a luz das estrelas e que não passavam de moscas perdidas.”

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Paulo Moreira

Brazilian pharmacist in loved with History, Fantasy and Ecofiction. Author of The Blood of the Goddess. I write about nature in poems and fantasy stories.