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O Sangue da Deusa — Histórias dos Monverath

Paulo Moreira
25 min readFeb 27, 2024

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Quando Glaudir acordou, ele não conseguiu ver o sol. Era o dia 30 de março e o dia anterior, ou melhor dizendo, a noite anterior o deixara exausto. Depois de terem enfrentado os Selvagens, os ivirezes cavalgaram a maior parte da madrugada e penetraram a Cordilheira de Andrus, toda sombreada e de picos frios. Um de seus montes deixava uma sombra no local onde dormiam, sendo o único esconderijo que haviam encontrado. O que acontecera no dia 29 era algo misterioso e, embora a morte daqueles temidos uriarques fosse boa, alguma coisa má e perigosa estava claramente ocorrendo. Foi isso o que Glaudir percebeu, mas, tentando esquecer a noite passada, notou que não precisava se preocupar em escalar montanhas, uma vez que o rio, seguido o tempo todo, cortava a cordilheira em seu caminho vindo da Cachoeira Ant. Se Lúminar estivesse lá, teria que enganar Ant, pois, caso ele fosse mesmo um andarilho das sombras, talvez quisesse matá-la.

Bochechou. Ant estava sentado numa rocha, pensativo, tomado totalmente pela sombra da montanha. Vestia uma roupa escura, com um cinto grosso onde pendurava a espada. Ant não usava mochilas, somente uma bolsa vermelha, a qual os outros ivirezes ainda não o tinham visto abrir. Seu olhar rígido de poucas olheiras vigiava o curso do rio com um ar austero, mantendo fixos os olhos negros e brilhantes.

Glaudir levantou-se cansativo e indisposto: — Bom dia, Ant?

— Bom dia — retribuiu o outro. — Por favor, não me chame de Ant. Meu nome é Hargot.

— Podia ter dito isso quando o segui antes. — Glaudir observou seus companheiros que ainda dormiam. Procurou saber como Tick havia dormido com tudo aquilo que houvera. — O que você estava fazendo aqui? E, por favor, não diga “só de passagem”.

— Acho que é você quem deve me dizer o que está fazendo aqui — disse Hargot. — Afinal, você deveria estar com seu pai.

Glaudir não estava a fim de discussões sobre quem devia começar a contar, então não se importou de falar a verdade.

— Fui mandado por issacerezes. Eles disseram que Lúminar poderia estar aqui, mas não tinham certeza. Precisavam que alguém os confirmasse, e esse alguém foi eu.

— E os outros?

— Docus, o issacerez, apenas para me vigiar e Tick, apenas para conhecer a Cachoeira Ant.

De repente, Glaudir se lembrou dos versos que o pai mandara e, por impulso, começou a recitar. Talvez assim, Hargot contasse os segredos: — O Brilho do Sol e da Lua emana do Ouro Pálido, assim como seu Último Guardião lhes tem levado…

— O que disse? — indagou Hargot, surpreso. — Seu pai lhe disse esses versos?

— Não. Na verdade, ele colocou-os em um papel dentro de meu cachimbo, escondido de mim.

— Deixe-me adivinhar, ele lhe deu o cachimbo. Nesse cachimbo há a imagem de Lúminar, e a lua revela as runas “i” e “a”, não é?

— Sim, exatamente. Como sabe disso tudo?

Hargot sorriu e se levantou da rocha, alegre. Ficou de costas para Glaudir e observou as montanhas do oeste.

— Então, é a hora mesmo — suspirou ele.

— Hora? Hora de contar os segredos de meu pai? — perguntou Glaudir com uma pulga atrás da orelha.

— Bem, mais ou menos. Preciso lhe contar várias coisas, Glaudir, mas a sós e não aqui. Vou com você à Cachoeira Ant para lhe falar algo muito importante que seu pai gostaria de dizer. Quando Docus e Tick o deixarem sozinho comigo, vou levá-lo a um local seguro.

— Não precisa se preocupar com eles. São confiáveis e já demonstraram isso muitas vezes.

Hargot virou os olhos para Docus, e Glaudir percebeu que ele não se dava muito bem com issacerezes: — Sei que Tick é seu grande amigo, Glaudir, mas o que tenho para lhe dizer não é algo para seus ouvidos, e muito menos para Docus.

— É sobre a morte de Lúminar? — questionou o ivirez.

— O que? Não, não é sobre isso. Pelo que eu saiba, Lúminar não vai morrer. Ela está segura e sabe muito bem se virar sozinha. O que deu a você essa ideia?

— Docus disse que seu irmão ouviu sobre um tal “sangue de Lúminar” e…

— Justamente sobre isso que quero lhe falar. O Sangue de Lúminar. Mas agora não é hora para conversas. — Baixou o tom de voz e, com um olhar ameaçador, prosseguiu: — Será melhor que seus companheiros não saibam nada sobre a nossa conversa, e nem sobre seu pai.

— Já sabem sobre meu pai! — exclamou Glaudir. Seus dois amigos começavam a acordar. — Se está planejando matar Lúminar, é melhor correr, pois não vamos permitir tal ousadia.

Docus segurou apressado seu arco e a aljava, mirando Hargot outra vez, e, se levantando, afastou-se para trás para acordar Tick, que ainda insistia em dormir.

— Sabemos que vocês, andarilhos das sombras, querem matá-la — disse ele. Pelo visto, havia ouvido toda a conversa. — Meu dever de vandoriel é protegê-la e se você se atrever a tocar nela, as minhas flechas-safira vão deixar seu corpo cheio de buracos.

Vandoriel? Matar Lúminar? Andarilhos das sombras? Afinal, do que estão falando?

Tick ergueu-se e, mesmo sonolento, tirou sua espada e se posicionou.

— Já demonstrei minha confiança. Eu os salvei dos uriarques, e é assim que me agradecem? — os três fizeram um círculo ao seu redor, encurralando-o. — Ao menos me deem uma chance de explicar caso estejam gratos pelas suas vidas.

— Claro que estamos gratos — disse Glaudir. — Vamos, fale!

— Glaucor me mandou vir para a Cachoeira Ant para proteger seu querido filho Glaudir. — Hargot sentou-se de novo na pedra, passando a impressão de que a conversa iria demorar. — Ele estava preocupado e precisava que alguém lhe contasse seus segredos, sobre os mistérios que ele guardava. Eu sou um dos únicos a saber a verdade, mas não pretendo contar aqui e agora. Não sou um andarilho das sombras. Esses são seres malignos e espectrais que servem às Trevas. Infelizmente, os issacerezes invertem tudo e, já que não gostam da nossa ordem, usam esse termo como sinônimo do que somos. E, sobre o sangue de Lúminar, é de espantar que um issacerez não saiba sobre ele.

— “Ele”? Você fala como se o sangue fosse alguma coisa — disse Docus. — E, além do mais, ainda não sou um issacerez.

— O sangue de Lúminar é algo que vocês só saberão se forem para a Cachoeira Ant. Não quero falar sobre ele aqui, e com certeza não vou me atrever após aqueles estranhos acontecimentos ontem à noite.

— E meu pai faz parte dessa tal ordem? — perguntou Glaudir.

— Sim. E acredito que seja um dos melhores membros. Mas falar isso na frente de dois estranhos é perigoso, Glaudir, principalmente para Glaucor. Quero dizer que os andarilhos das sombras estão perseguindo todos os membros que conhecem ou que supõem que sejam. Eles me atacaram e por sorte não lhe capturaram, Glaudir. Você se lembra deles? Ao lado da casa do guarda Tomín…

— Aqueles cavaleiros são os andarilhos das sombras?

— Mais ou menos. Porém, não posso falar mais nada a vocês. É muito perigoso. O único lugar seguro é a Cachoeira Ant, e temos que chegar lá antes do anoitecer. Tenho quase certeza que eles estão nos seguindo e, se nos acharem, não terão dó de nós. O mínimo de informações é o melhor para o bem de vocês e, também, da nossa terra. Algo terrível está acontecendo aqui em Haldom. As profecias dos Antigos Sábios e dos Mestres de Outrora estão se realizando. As Trevas se aproximam.

Ao ouvir a última frase de Hargot, os três se assustaram e abaixaram as armas. Fazia sentido. Se as Trevas estivessem perto de Haldom, isso explicaria o aparecimento dos Selvagens Uriarques.

— Prestem atenção que perceberão a chegada do Reino das Trevas com seus sinais. Esta é a hora. Os sinais previstos nunca antes foram tão claros. Glaudir, Docus, Tick e eu somos quatro. Se vocês pertencessem a ordem, saberiam o valor que tem esse número. Por favor, venham comigo à cachoeira. Lá poderei explicá-los tudo.

— Por que não pode contar aqui? — intrometeu-se Tick.

— Porque aqui é perigoso. Já é nove da manhã. Temos que chegar logo àquele local antes que chegue a noite. O que me dizem, ivirezes? Confiam em mim, assim como posso confiar em vocês?

A pergunta era uma das piores. Como confiar naquele que não conheciam? Já havia demonstrado ser de confiança salvando os ivirezes, mas, mesmo assim, ele poderia querer matar Lúminar. O pior era que Glaudir tinha falado sem querer que Lúminar estava na Cordilheira de Andrus, bem onde estavam, bem onde Hargot estava. A sorte era quem resolveria tudo, se verdadeiramente tivessem sorte.

Docus e Tick olharam para Glaudir, como se a decisão só coubesse a ele e a ninguém mais. Mais propenso a dizer não, Tick lhe interrompeu: — Não importa o que você escolher, Glaudir. Eu irei com você. E se for à Cachoeira Ant com ele, eu também vou, pois dois contra um é melhor que um contra um. — tentou um olhar ameaçador para Hargot, mas ele nem reparou.

Glaudir respirou fundo, como se a resposta tirasse um fardo pesado das costas.

— Está bem. Eu vou. Quero saber o porquê de meu pai ter tantos segredos. Entretanto, a confiança é algo que você não ganhará agora. Apenas o tempo vai me dizer se realmente devo confiar.

— Obrigado. Comam um pouco, pois já já vamos partir — ordenou Hargot.

— E nada de montar o meu pônei — disse Glaudir.

Hargot riu: — Acredite, eu tenho uma montaria bem melhor que a sua.

Com o novo líder, os três começaram a cavalgada. Hargot, o antigo Ant, andava apressado e, pelo visto, já era acostumado a viajar. Ia na frente, todos seguindo o rio. Ali ladeiras eram frequentes, mas não tão altas para que diminuíssem o ritmo. Com suas sombras compridas, as montanhas impediam a visão do exterior. Apenas alguns gritos de águias e harpias surgiam de vez em quando sobre a terra fria e escura dos montes. Quando o vento que vinha do oeste soprava, os alcançava fraco mas gelado como a brisa do fim do outono. Caminhos de pedras partidas apareciam entre as montanhas, todos antigos e a maioria escondida por plantas ou enterradas na areia. Glaudir não sabia dizer se aquilo fora posto de propósito ou não, mas Hargot seguia um deles, guiando os companheiros em seus pôneis.

Com o tempo, a água do rio ficou mais turbulenta, e um chiado molhado começou a encher os ouvidos dos ivirezes. Desviaram da torrente e começaram a subir uma colina verde e de terra úmida. O rio alargou-se antes de desaparecer atrás de um morro. O barulho era de chuva forte, confirmando seus pingos pesados. Mesmo com o caminho de pedra sumido como o rio, Hargot continuava a guiá-los. O vento trazia respingos gelados a seus rostos. No topo da colina, os quatro ivirezes pararam para observar, surpreendidos pela Cachoeira Ant.

O brilho do sol atravessava as montanhas e repousava na face das águas céleres da cachoeira. Formava respingos de várias cores e um fraco arco-íris na frente do abismo. O líquido precioso jorrava resplandecente e rugia voraz, seus pingos eram carregados pelo vento forte para iluminarem as montanhas. A luz guiava as águas da cachoeira. Parecia gritar ou chamar, caindo pesada no rio abaixo. Tocou os ivirezes com seus dedos molhados, e eles admiraram-se com sua grandeza.

Ondorionen — disse Tick, grato por ter chegado ali.

— Amarrem os pôneis — disse Hargot. — Precisamos ir para o alto. Lá estaremos seguros.

— Como assim? Você disse que contaria tudo aqui.

— Disse que contaria na Cachoeira Ant, e ainda não estamos exatamente na cachoeira.

Os três não entenderam direito o que ele havia dito, mas obedeceram — não completamente, quero dizer, pois não havia lugar para amarrar os pôneis, e eles tiveram que deixá-los sozinhos bem perto do rio. Hargot os levou para um dos flancos da Cachoeira Ant, próximo demais do rio. Ficaram encharcados. Mostrou uma trilha rochosa que subia por dentro da cascata, escondida pela escuridão. Seria difícil seguir adiante. O local era alto e estava bastante molhado. Notaram vários degraus esculpidos na rocha, e eram neles que os ivirezes iam pisar.

Confiante, Hargot saltou para o primeiro degrau. Acenou em seguida para os ivirezes lhe acompanharem. Docus e Tick concederam, mas Glaudir demorou um pouco para pular. Tremeu ao chegar ao outro lado por causa da pedra gélida e quase escorregou. Detrás da cachoeira, os ivirezes começaram a subida difícil. O reflexo trêmulo e ondulante da água gravava-se na parede negra, clareando timidamente o percurso. A cachoeira gritava em seus ouvidos, e seus pingos deixavam a trilha rochosa cada vez mais escorregadia.

— Cuidado a cada passo. — murmurou Glaudir para si mesmo.

Sem sombras de dúvidas, era preciso cuidado. Qualquer escorregão podia levá-lo a precipitar-se no rio e se afogar na correnteza forte da cascata. Seus companheiros já se distanciavam no alto. Ele respirou fundo, torcendo para que seus olhos não virassem sem querer para a cachoeira, sabendo que um grande precipício o esperava naquela direção. Depois de três passos vagarosos, tomou coragem e não parou mais.

Como Docus era mais corajoso, se atreveu a ir para a beira dos degraus de pedra e a observar a imensidão de água lá embaixo. A queda d’água borbulhava e saltava nas ondas turvas. O vento urrava e enlouquecia as gotas ao seu redor. A altura e a escuridão fizeram com que Docus voltasse assustado. Virou-se para Hargot e perguntou:

— Aonde está nos levando mais exatamente?

— Já disse. A um lugar seguro — respondeu o outro, com o rosto voltado para cima.

Quanto mais subiam, mais os degraus ficavam molhados. Rachaduras surgiram nos degraus, e algumas pedras começavam a se soltar. Chegaram a uma porta de ferro e a estranharam. Não possuía nenhuma tranca, mas Hargot ficou tateando-a por um bom tempo. Foi aí que perceberam que não era de ferro e sim de rocha sólida, fria por causa do lugar. Hargot tocou um declive. Tac! O ivirez comemorou com uma gargalhada. Os outros não faziam ideia do que ele estaria fazendo, mas não queriam interrompê-lo. Hargot abriu sua bolsa avermelhada e tirou um objeto conhecido por Glaudir. Era um cachimbo, bastante semelhante ao dele, e o ivirez enfiou-o num compartimento da porta. Encaixou perfeitamente ali.

A monveran do cachimbo brilhou com uma luz pálida e gelada qual uma estrela. Hargot esquivou-se para trás e pronunciou palavras que o ivirez não compreendia.

Ondori luminar-eth saro then-eth.

Uma rachadura cortou a porta de pedra ao meio. O chão tremeu e a porta começou a se abrir. Hargot retirou o cachimbo e colocou-o de volta na bolsa. O interior estava iluminado por uma luz amarela, e era mais quente que lá fora. O guia entrou apressado, chamando os outros:

— Venham! Podem confiar em mim.

Passaram pela entrada, e a porta de pedra trancou-se às suas costas. Tick olhou pessimista para ela: — Ótimo. Estamos trancados.

— Não se preocupem — disse Hargot. — Glaudir tem um cachimbo semelhante ao meu. Ele pode abri-la.

— Então foi por isso que meu pai deu o presente — refletiu Glaudir.

— Exatamente. Sigam-me!

O local parecia um túnel, porém, para sua sorte, tochas iluminavam o corredor, fazendo as sombras dos ivirezes tremerem. Hargot desapareceu na curva da entrada, e os outros aumentaram o passo para encontrá-lo. A Cachoeira Ant emudecera, e a sua escuridão os abandonou. Ali, cada sussurro ressoava num eco alto e repetitivo, como se uma criança brincalhona os imitasse. Teias de aranhas enfeitavam as paredes como fios de prata, no entanto, nenhuma apresentava insetos venenosos.

Os três foram caminhando apressados, uma vez que era difícil manter o mesmo passo de Hargot. Notaram algumas inscrições desconhecidas, a maioria rúnicas, em algumas paredes do túnel, mas não deram a devida atenção àquilo, preocupados com se deviam ou não confiar no guia. Se bem que agora, Glaudir mal pensava nisso, estando a mente envolta em pensamentos sobre Glaucor. Enfim, ele saberia de tudo. O percurso ficava mais arenoso conforme descia e Hargot andou mais devagar para não topar em nada.

Entraram em um salão enorme. O cômodo estava repleto de tochas cravadas em pedras, e o solo era rocha pura, mas alguém parecia ter varrido a terra recentemente. Uma estátua branca fora esculpida na parede mais ao fundo, com certeza de um monveran. As asas erguiam-se como se fosse saltar em um voo, e a cabeça estava voltada para a frente com o olhar rígido e os dentes pontudos à mostra. As pernas compridas e traseiras seguravam o solo, suas garras afiadas se abriam para um ataque. A cauda com uma seta apontava para a entrada como o ferrão ágil de um escorpião. Em meio às várias marcas desenhadas em sua pele, uma era bem notável. Possuía uma tonalidade azulada e girava ao redor do pescoço, parecendo um colar de safiras.

Docus quase virou pedra, encantado:

— Lúminar, a Luz.

A monveran ficava atrás de uma mesa de pedra, com uma vasta quantidade de assentos. A mesa não estava no mesmo nível do chão, mas sobre cinco degraus. Com pressa, Hargot parou ao lado da mesa e colocou ali a bolsa vermelha cuidadosamente, sem desviar o olhar.

— Sentem-se, por favor — pediu ele. Os outros obedeceram, mas Hargot não o fez, permanecendo em pé. Respirou fundo e continuou: — Essa é a hora.

Os ivirezes não souberam se ele falava consigo mesmo ou para eles, porém aguçaram os ouvidos para não perderem os detalhes. Pelo visto, ia contar uma longa história, pois parecia tentar se lembrar de algo.

— Esperem um momento. Vou pôr ordem no tempo para não confundi-los.

Com aquela frase, confirmaram que a história ia demorar e que, provavelmente, seria bem confusa.

Hargot sentou-se e uniu as duas mãos. Virou a face para Docus e continuou:

— Por favor, issacerez, conte a eles sobre a lenda da Batalha dos Gritos e das Lágrimas de Lúminar, esta última pouco conhecida como Sangue de Lúminar.

— Eu sei sobre elas — exclamou Docus. — Mas o que têm a ver com Glaucor?

— Só para familiarizá-los com a história que vou contar, mas, antes disso, preciso recordar algumas coisas.

“Ou inventar”, pensou Docus. Os rostos de seus dois companheiros brilhavam diante de uma lâmpada, mas o de Hargot era uma sombra imóvel. A estátua de Lúminar estava às suas costas e sua aparência ameaçadora sumira, agora estava pronta para ouvir atentamente. Docus suspirou e começou:

— Aqui, há muito tempo, Havar dominava, fazia de Haldom seu grande reinado. Ele era horrível, um monveran que devorava almas e vidas, por isso ganhara o nome de Morte. Malbek, Hundar e Angar, liderados pelos Monverath do Claro, Morgoly e Lúminar, ergueram voo em direção a Atokuzi, que era o local onde a Morte descansava. Estavam decididos a exterminar o monveran maligno. Então, deram início à Batalha dos Gritos. Eles lutaram com garras e dentes contra Havar, bem mais esperto e confiante de si mesmo. Houve terror nos céus e gritos assustadores foram ouvidos, todos de dor. Hundar, a Guerreira, atacou o pescoço do monstro com uma mordida, mas o inimigo não sentiu nada. Seu pescoço era ossudo e Hundar foi perfurada, soltando um pequeno grito fraco e abafado, ganhando uma morte dolorosa e, pior, lenta. Os outros monverath sabiam que não venceriam, então fugiram.

Hargot continuava quieto sem perturbá-los, nem parecia estar ali com eles. Quando Docus parou, ele lançou um curto olhar de prossiga, e Docus continuou, embora estivesse atento a cada movimento que o outro fazia, e ainda mais atento na sua espada afiada.

— Sabiam que deveriam atacar novamente, mas como podiam lutar contra a morte? A única tática era unir todos os outros monverath contra o poderio. Infelizmente, esses temiam o inimigo. Até o melhor dos monverath, Hávis, o Dócil, não concordara, bem como Súmare, a Esperança, o que lhes fez pensar em desistir. Mas quando tudo parecia perdido, surgiram dois Mestres da Magia que juntaram-se a eles, planejando uma mágica que prenderia Havar em Atokuzi. No entanto, Lúminar, aquela que mais ansiava presenciar a morte do irmão das trevas, ficou nas montanhas, protegida, pois se a Morte provasse de seu sangue, teria o controle da luz e, consequentemente, do fogo.

— A luta logo começou. Garras, dentes e caudas se chocaram numa batalha sangrenta. Havar tinha grande vantagem, mas os outros conseguiram levá-los para as profundezas de Atokuzi enquanto os Mestres preparavam a prisão. Havar acabou por matar todos os outros, mas, felizmente, ficou aprisionado pela eternidade. Essa é a história da Batalha dos Gritos, como dizem os issacerezes e como contam os seus livros.

Voltou o rosto novamente para Hargot, ainda desconfiado de algo.

— Continue — murmurou o outro, mexendo-se pela primeira vez e mostrando-se atento ao que Docus iria falar.

— E ai começa a lenda das Lágrimas de Lúminar…

— Ou Sangue de Lúminar. Vocês logo vão entender o porquê — disse Hargot.

— Esta não é muito longa e fala de um objeto mágico. Ao ouvir os gritos dos irmãos, Lúminar zarpou pelos céus emitindo o forte brilho de suas asas para mostrar o fim do reinado de Havar. Voou para o Oeste qual uma estrela cadente, e lágrimas cristalinas escorriam de seus olhos azuis. As lágrimas formaram pingos de arco-íris e desceram como uma suave chuva, regando o solo daquela terra. Parou nas montanhas, pedindo desesperada para que alguém colhesse suas lágrimas, e esse alguém foi encontrado. Colocou-as em um frasco pequeno e transparente e, com sua unha, traçou um corte fino em seu pescoço, armazenando todo o poder da Luz e do Fogo naquele objeto. Pediu para o ivirez que agora o continha guardá-lo e protegê-lo do Mal e das Trevas. E, sabendo que sua irmã Súmare abandonara esta terra e que lhe esperava, deixou Haldom para sempre.

— Pelo visto, não para sempre, não é mesmo? — disse Glaudir.

Todos olharam para Hargot, ainda quieto em seu canto. Sua sombra aumentou de tamanho quando se levantou, assustando-os. Sem se sentar outra vez, disse: — Minha razão para pedir que Docus contasse essa lenda era para que ficassem familiarizados com o que vou dizer.

Abriu a sua bolsa e, cuidadosamente, tirou de dentro um pequeno baú de bordas douradas. Deixou-o no centro da mesa, à vista de todos ali presentes.

— Para começar, a nossa ordem não tem nada a ver com andarilhos das sombras. Contem para que na sua vida não vejam um desses, se bem que Glaudir já chegou a ver alguns. Somos chamados por nós mesmos de Guerreiros Iluminados, pois guardamos um objeto precioso e de grande valor. Vou lhes contar a verdadeira história do frasco que contém o poder da luz e do fogo, que é chamado de ondori.

— Um cavaleiro das trevas levava um objeto desconhecido para Havar, aparecendo na fronteira oeste de Haldom em 352 dessa era. Recebemos a notícia por um alvane de nome Estrela de Luz, e já que o cavaleiro levava um objeto para Havar, tentamos roubá-lo e obtivemos sucesso. Descobrimos que o objeto era muito poderoso e, de alguma forma, os issacerezes acabaram sabendo sobre ele e, assim, criaram a lenda. Estrela de Luz contou-nos que foi criado pelos alvanes sulistas onde Sireyg era um rei, o qual roubara a Sabedoria dos Verith, os Grandes Celestes. O Alvane-Rei o queria de volta para aumentar o poder das trevas, portanto, era preciso escondê-lo. Escolheram para isso a Cachoeira Ant, nessa caverna, pois aqui há inscrições sobre a ondori. Elas foram inscritas pelo antigo Feliath a partir das visões do velho monveran Dridah, o Vidente. A caverna é esta onde estamos.

— Eu vi as inscrições — exclamou Glaudir. — Mas e esse monveran? Nunca ouvi falar dele.

— Não é por menos — disse Docus. — Dridah, o Tradutor, é um dos monverath mais desconhecidos. Praticamente, não se sabe quase nada sobre ele. O chamamos assim por ter a habilidade de traduzir todos os idiomas. Nós, issacerezes, o usamos como insígnia, um monveran cor de ouro, já que entendemos a língua dos monverath. Muitos ivirezes teimam em dizer que é Sórum, o Impiedoso, mas é mentira. Cada lado do triângulo simboliza uma palavra: disposição, calma e sabedoria, os três pilares básicos para traduzir.

— Feliath era um issacerez, pelo que acreditamos — disse Hargot. — Entendia a língua dos monverath e, como Dridah não podia escrever, ele tomou essa função. Nós, Guerreiros Iluminados, soubemos que Dridah não traduzia e nem entendia outras línguas além do hamarin, mas sim interpretava o futuro. Graças a Feliath, suas visões foram gravadas aqui. Esse issacerez era o vandoriel do monveran vidente, ou seja, seu montador. Escreveu não só sobre o futuro, como também sobre o passado. Algumas inscrições nos ajudaram a entender a origem da ondori, porém é muito difícil traduzir, visto que há runas, letras e símbolos estranhos, a maior parte desconhecida.

Tick resmungou, como se não gostasse do que ia falar, e remexeu-se no assento: — Desculpe pela pergunta, mas onde estão os outros Guerreiros Iluminados?

Hargot parou por um tempo e abaixou a cabeça: — Essa manhã eu disse que o mínimo de informações era o melhor para vocês, mas, diante de situações tão terríveis, talvez precise repassá-las rápido. Sobre os outros Guerreiros Iluminados, vão entender logo, logo. Onde eu estava? Ah, sim! Essa caverna é um antigo esconderijo que fora abandonado. Nós, Guerreiros Iluminados e os Issacerezes de Lúminar, nos reuníamos…

— Pai… — murmurou Docus.

— Estes últimos defendiam a monveran Lúminar, pois os outros issacerezes acreditavam que ela havia os deixado para nunca mais voltar, sem protegê-los. Os Issacerezes de Lúminar sabiam que ela voava pelo Oeste para atacar as criaturas das sombras, defendendo a região dos alvanes, e não ficavam calados diante dos outros. Todos sabiam que eles faziam parte de uma ordem desconhecida guardiã de um poder secreto, ou era assim que os boatos diziam. Acreditavam que possuíam um esconderijo e, em tal esconderijo, estava o poder, a suposta ondori. Os issacerezes atacavam-nos com mentiras, chamando-os de ladrões e convencendo os Senhores a expulsá-los de suas cidades e suas aldeias — não sei se por nos temerem ou por temerem um outro alguém. Infelizmente, os boatos da ondori acabaram chegando aos ouvidos dos Servos de Sireyg, o Rei-Alvane do Sul, que queria o objeto. Esses servos que falo são os andarilhos das sombras. Eram piores que os issacerezes; nos capturaram e nos torturaram. Como não confessaram, nos mataram. Entretanto, graças a eles, o segredo continuou a salvo. — de algum modo e talvez sem motivo aparente, aquela frase abriu um sorriso no rosto de Docus, frágil mas perceptível — Aos poucos, vários Issacerezes de Lúminar e Guerreiros Iluminados foram perdidos por causa da tal ondori que possuíam.

— Então é por isso que não estão aqui? — perguntou Tick.

— Correto. Fizemos amizade com os ubarezes da Floresta Talpek que conhecem a história verdadeira. Com isso, eles puseram guardas para vigiar a Ponte Wsavusan e a passagem do Vale das Libélulas, cuja missão é impedir a entrada dos andarilhos das sombras por lá. Os Servos de Sireyg preferem não seguir a Grande Estrada, pois ali há a presença de alvanes bastantes hostis a eles.

— Então, como conseguiram entrar? — indagou Glaudir.

— Não sei responder ao certo. A Oestrada está protegida por Aradon e seu cavalo e, com certeza, os andarilhos não ousam passar por ele. Se seguissem a Estrada de Angar, alcançariam a Floresta das Grandes Árvores, onde Húria os atacaria. Há monverath do nosso lado que odeiam esses seres, Húria é uma delas. Mas, de alguma maneira, eles passaram pela nossa proteção e estão caçando todos os Guerreiros Iluminados, decididos a não esperar por mais tempo. Sireyg está ficando irritado desse nosso joguinho de esconde-esconde e está usando muitos recursos para encontrar a sua ondori, desde cavaleiros até espiões em Haldom. Vários líderes dos issacerezes estão sendo enganados ou ameaçados por seus servos para ajudá-lo. É por isso que desconfio de você, Docus.

Docus relaxou, antes tenso pelo relato de Hargot. Confiante, de si mesmo, defendeu-se: — Pode ficar tranquilo. Ainda não sou um issacerez. Estou em treinamento.

— Que bom. — Hargot descansou, sentando-se outra vez. Olhou nos olhos de cada um, não com um olhar ameaçador, apenas olhava. Foi nesse instante que Glaudir reparou que ele estava exausto. Hargot ainda não confiava neles ou, mais provavelmente, não queria confiar. — O mínimo de informações é o melhor, por isso peço que Docus e Tick saiam por um tempo, pois é a hora de contar o que verdadeiramente interessa a Glaudir: sobre seu pai. Só quero o bem de vocês dois. Acreditem em mim, sabendo sobre isso, mais os ponho em risco.

— Vamos arriscar — exclamou Docus, olhando para Tick, mas este estava amedrontado e confuso.

— Se é assim… — suspirou Hargot. — Felizmente, todos estavam errados sobre a ondori. Ela não estava aqui, no esconderijo. Estava guardada e protegida por uma pessoa que a passou de geração em geração o tempo todo, fora dos olhos de cobiça. Como o segredo era passado de pai para filho, os filhos também se tornavam Guerreiros Iluminados, ganhando o cachimbo que abre a porta desse esconderijo. Todos eles eram e ainda são chamados de Guardião, pois guardam a ondori, um objeto mágico com o poder da luz.

— E qual era essa família? — perguntou Glaudir.

— Diante de tantas coisas que lhe falei, Glaudir, é difícil de acreditar que você não saiba. Ela é a família Bautock.

— Que?! — Glaudir quase caiu do assento de pedra.

— Foi o que você ouviu. Glaucor não é só um Guerreiro Iluminado, mas também um Guardião. É ele quem retém o objeto, quero dizer, retinha. Na última visita que fiz à casa dele, em 21 de março, lhe avisei sobre os cavaleiros que se aproximavam. Isso foi um grande impacto para nós e motivo de perturbação. Discutimos muito e pensamos em demasia, mas baixo para não acordar você. Glaucor me disse que os issacerezes haviam lhe chamado, aumentando as suspeitas de que Sireyg já sabia que a família Bautock guardava a ondori. Desesperado, Glaucor decidiu entregá-la a mim, contando que eu levasse-a para cá, porque esse esconderijo ainda está oculto, pelo menos, assim esperamos. Eu só me acalmei quando descobri que os cavaleiros não estavam em Haldom à procura de Glaucor, mas sim em viagem ao Norte, pelo que acho, para investigarem o aparecimento dos Selvagens. E então eu percebi que havia usado o poder da ondori na frente deles, e agora eles sabem que ela realmente está em Haldom como suspeitavam.

Fechou os olhos exaustos e respirou fundo. Tick e Glaudir acharam que ele ia falar alguma coisa, mas foi Docus quem tomou a palavra.

— Se esse objeto, a ondori, traz tantos perigos, por que não a destruíram?

— A princípio, pensamos em fazê-lo — respondeu Hargot. — O issacerez Feliath escreveu versos em hamárinos sobre isso, infelizmente, os antigos Guerreiros Iluminados tinham uma grande estima, para não dizer cobiça, pelo objeto. Apagaram uma grande parte desses hamárinos, mantendo o resto para os Guardiães. Deixaram-nos os dois primeiros para sabermos quem deveria destruí-la.

— E como dizem os dois versos? — questionou Docus. Tick permanecia calado depois que Hargot falara sobre os perigos.

— “O Brilho do Sol e da Lua emana do Ouro Pálido, assim como seu Último Guardião lhes tem levado.” A ondori emite uma luz, assim, é claro que o primeiro verso fala dela. O segundo fala sobre o Último Guardião, o qual, acredito, vai destruí-la, pois é o último.

Glaudir tombou para trás uma outra vez. Os versos eram idênticos aos que Glaucor o enviara no bilhete, e ele tinha a continuação. “Por favor, não seja o que estou imaginando!”. Levantou-se do assento e, apressado, jogou sua mochila na mesa. Hargot não entendeu nada, mas Docus e Tick suspeitavam de que ele iria pegar os versos. No entanto, não era isso. Abriu-a e tirou vários objetos, colocando-os na mesa. Um cobertor, duas panelas, o cachimbo que ganhara, um saquinho de arhevajika e, finalmente, um espelho. Sem se sentar, pegou-o e disse, apressado e assustado:

— Meu pai me deu esse espelho. Chama-se Sólut, que significa “lua” e “sol”. Com ele, posso ver minha mãe observando a lua e meu pai diante de um céu ensolarado. Não é esquisito?

— Na verdade, não — disse Hargot, surpreendendo Glaudir. — Pelo que eu sei, você é o último guardião já que seu pai não mais o é. É óbvio.

Glaudir colocou a mão no bolso, tirando de lá uma caixa de fósforos e um papel úmido. Rapidamente, passou-o para Hargot e voltou a sentar-se.

— Leia-o! — ordenou.

O ivirez quase caiu para trás com o poema completo. A luz amarela das tochas faiscou em seus olhos negros. — Como isso é possível? — exclamou Hargot, sem acreditar no que via. — Pensei que seu pai tinha lhe dado os dois primeiros versos.

— Não. Foi o poema completo.

— Não pode ser. Ele não ousaria confiar em você a ponto de fazer tal coisa. Desculpe-me por falar isso, Glaudir, mas ele não devia tê-los entregado para você. A não ser que… — Hargot parou e começou a pensar. O rosto iluminou-se, e ele acalmou a respiração mais uma vez, se dando conta do que acabara de se desenrolar à sua frente. Glaudir também pensava a mesma coisa que o ivirez.

— Talvez eu seja esse Último Guardião que porá um fim a ondori.

— Sim, faz sentido. Posso dizer que talvez tenha sido uma grande esperteza de Glaucor. Se ele a desse para qualquer outro Guerreiro Iluminado, correria o risco de deixá-lo ambicioso. Você trouxe a luz do sol e da lua, que é o espelho dado por ele. Ele confia muito em você, só pode ser isso.

— Se for o desejo de meu pai, que sei que é, vou cumpri-lo — disse Glaudir, decidido, embora não soubesse o que iria fazer.

Hargot baixou os olhos novamente ao papel:

— O terceiro e quarto verso dizem claramente que o Último Guardião vai destruí-lo, mas em chamas. Não entendo o que isso quer dizer. Filho do Ouro… Não faz sentido.

Glaudir suspirou, aflito, e Tick aproximou-se de Hargot, curvando as costas: — Chamas? E se for um Dragão? — disse ele, pasmo.

Se fosse um Dragão, ele não se atreveria a lutar contra tal monstro. Todos os seres viventes de Aragus sabiam da maldade que aquelas criaturas possuíam e do perigo que cada pessoa corria ao se aproximar de uma de suas moradas.

— O fogo de um Dragão é o mais quente que existe no mundo — disse Hargot. — Mas não acho que seja um. Todos nós, Guerreiros Iluminados, acreditamos que a ondori seria levada a um lugar desconhecido e que só nesse lugar podia ser destruída. Não acho que seja um Dragão, embora ambicionem fortemente a riqueza e o poema tenha as palavras “Filho do Ouro” … Felizmente, acho que sei quem pode nos responder. É um viajante de Aragus, conhece vários lugares e tem uma grande sabedoria. Tenho quase certeza de que saberá nos informar sobre isso.

Glaudir olhou para a bolsa de Hargot. Não parecia que a ondori, o frasco contendo um poder enorme, estivesse ali dentro. Sentia que seu pai realmente queria que ele acabasse de uma vez com ela por causa dos problemas que havia causado. “Tantas mortes, tanta dor, tantos segredos apenas para mantê-la protegida quando, na verdade, era preciso destruí-la”, pensou. Glaucor tinha lhe dado uma missão, e Glaudir não ia desobedecer, não importava o perigo corrido e as dificuldades enfrentadas. Não era só por seu pai, mas também por todos os outros ivirezes que haviam sofrido para guardá-la.

— Onde está a ondori? — perguntou Docus, curioso.

— Aqui conosco. Eu a trouxe comigo.

Hargot levantou-se e tirou uma chave de seu bolso. Segurou o pequeno baú do centro da mesa e enfiou a chave na fechadura. Os ivirezes se aproximaram para ver, com os olhos enchidos de admiração. Hargot abriu o baú e mostrou-a.

A ondori era um frasco meio azulado e liso. Uma corrente de ouro a prendia, para que o frasco pudesse ser usado como colar, e a joia parecia emitir um brilho estrelado no centro. Os ivirezes se decepcionaram um pouco. Pensaram que era algo maior, mais belo e encrustado de pedras preciosas, mas aquilo era apenas um objeto simples sem líquido algum. Hargot pegou-a com cuidado e deixou o pequeno baú que a guardava na beira da mesa. Observou com encanto e falou, cheio de confiança:

— Essa joia sobreviveu por mil anos e, enfim, é chegada a hora de ser destruída. — passou-a para a mão de Glaudir, que mostrou-lhe um tímido sorriso de gratidão.

A ondori produziu um brilho pálido e vagaroso ao tocar a pele e os dedos de Glaudir. Sua superfície era fria, mas ao seu toque, aqueceu-se levemente. A luz deu ao ivirez mais coragem para enfrentar os inimigos. Notou a magia intrigante de seu interior, uma magia boa e poderosa. Segurou a corrente que prendia a ondori e colocou a joia mágica no pescoço. Seu coração pulsou mais devagar, como se não houvesse mais medo. O ivirez observou a estátua de Lúminar à sua frente e viu que ela não parecia mais querer atacar, ou então estar escutando em silêncio. A monveran branca sorria para ele, percebendo que Glaudir cumpriria a missão.

— Faça bom uso da luz da ondori — ouviu ele. Mas não era a voz de seus companheiros. Por um momento, acreditou que era Lúminar que falara, porém logo notou que a voz lhe era conhecida.

Glaudir havia ouvido a voz do pai soar em sua mente. Ele era o Último Guardião e não largaria a tarefa preciosa que lhe foi concedida.

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SUMÁRIO

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Paulo Moreira

Brazilian pharmacist in loved with History, Fantasy and Ecofiction. Author of The Blood of the Goddess. I write about nature in poems and fantasy stories.