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O Sangue da Deusa — Cadáveres e Selvagens

Paulo Moreira
27 min readFeb 27, 2024

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O monstro emergiu das sombras com um grito de fúria. Seus olhos amarelos moviam-se arregalados de um lado a outro. Procurava sua vítima. Mostrou os dentes cortantes e correu pela penumbra das árvores velhas. Docus ouviu soluços de choro, escondidos ao longe. Ele conhecia aquela voz desesperada. Era a de Glaudir. O issacerez correu contra o vento gélido, mas já era tarde demais. Um grito solitário e de dor ecoou pela floresta.

Docus acordou ofegante. Ainda era cedo, mas Glaudir não estava na cama, só Tick e ele permaneciam ali. Deitou-se tentando esquecer, pois havia se sentado institivamente após as visões. O pesadelo ainda persistia em sua mente. Os olhos, os dentes, o grito. Sem conseguir dormir, levantou-se e saiu do cômodo, lembrando a viagem. “É só um pesadelo. Não pode me fazer mal”, pensou ele.

Glaudir já estava acabando o desjejum quando o issacerez chegou na sala de jantar. Comia junto de seus avós e Úrian, sua tia. Docus sentou-se, aparentando cansaço, e a servente velha o serviu. Parecia serem seis horas da manhã uma vez que o sol ainda estava baixo. Porém, os trabalhadores de Umilzend já começavam a trabalhar.

— Tick ainda está dormindo? — perguntou Glaudir para Docus.

— Sim. E pelo visto, vai demorar a acordar.

Coris estranhou as olheiras do issacerez: — Não precisam se preocupar em arrumar suas mochilas. Súmarie já está arrumando e, em relação aos pôneis, Lenuel já os deixou à frente da casa.

Por incrível que pareça, Tick surgiu na cozinha sem sono e com aparência disposta. Sentou-se também e começou a comer. Ao terminarem, foram à sala de estar onde Súmarie arrumava a última mochila, a de Glaudir. Velho Coris mandara colocar comida a mais, embora o percurso fosse pequeno. Tick deu uma leve cotovelada no amigo e sussurrou:

— Dê bom dia para a moça.

Glaudir fingiu não ouvir, entretanto, para seu desespero, sentiu-se empurrado para perto de Súmarie, quase batendo nela. A ivirez estranhou enquanto Glaudir resmungava em pensamentos.

— Bom dia, senhor — disse ela, entregando a mochila ao dono.

— Bom dia — foi só o que Glaudir foi capaz de dizer, pegando a mochila desajeitado por causa do nervosismo.

— Belo espelho você tem — disse Súmarie, saindo dali logo em seguida, mas o ivirez não percebeu que ela se referia a Sólut.

Não demorou muito para que Tick fosse se intrometer novamente: — Mas ela é muito mais — disse, colocando sua espada no cinto e a mochila nas costas.

— Muito obrigado — resmungou Glaudir com um olhar ameaçador.

— De nada.

Todos, já com as mochilas nas costas, ouviram os relinchos de seus dóceis animais no lado de fora. Dispostos, saíram para a varanda ao seu encontro, seguidos dos parentes de Glaudir. O sol baixo brilhava no leste, iluminando o topo do milharal de profundezas escuras. O vento do norte assobiou e balançou as folhas compridas enquanto a luz aquecia a face dos ivirezes. Ali à frente estava Lenuel, o arqueiro guarda, com um de seus “bebês” e os três pôneis, Saltador, Raio e Sombra, à espera dos viajantes.

Edrina deu um longo abraço em Glaudir enquanto dizia: — Até logo, meu pequeno neto. Espero que volte para visitar-nos de tempos em tempos.

— Com certeza vou voltar — respondeu Glaudir com um sorriso de gratidão. — Agora que sei que são meus parentes, terei prazer em vir.

Coris intrometeu-se e começou as despedidas:

— Desejo que consiga fazer com que seu pai também venha. E, a você Tick, quando voltar para seu pai, diga a eles que estamos precisando de mais um carroceiro. A nossa produção está aumentando. E não se esqueça de controlar suas pernas para que não tremam!

Tick resmungou algo, mas manteve o rosto firme.

— Muito obrigado por sua hospitalidade — disse Docus. — Os issacerezes ficarão gratos por tudo.

— É, estarão. Que Lúminar ilumine todos em seu caminho. Ah, e tenham cuidado!

— Adeus! Temos que ir agora — despediu-se Glaudir ao lembrar-se de que viajar durante o dia seria muito melhor, pois chegariam mais rápidos ao destino antes de se encontrarem com os Selvagens.

Montaram os pôneis e começaram sua cavalgada apressada para o oeste. Glaudir levava sua bengala castanha e macia na mão. Ele ia na frente, bem próximo dos companheiros. Em cima de Raio, Docus levava o arco verde e a aljava nas costas, pertos um do outro. As flechas tremiam com o movimento repetitivo dos animais.

Aos poucos, os matos da estrada de barro foram aumentando em quantidade. Possuíam folhagens escuras e esguias, erguendo algumas hastes finas que se inclinavam ligeiramente para o chão. Pedras manchadas e carrapichos claros se escondiam entre eles. O percurso não foi nada difícil, mas sim muito monótono. Sem terem assunto para conversar, o silêncio permaneceu cobrindo-os, a não ser pelas passadas duras dos pôneis se chocando contra o solo. O sol branco continuava a brilhar no céu azul de poucas nuvens, típico da primavera. Seu esplendor só era prejudicado pelo alto milharal que cobria boa parte de sua luz, sendo visto apenas através das brechas ou pelo outro lado da estrada, onde produzia sombras compridas. Com os minutos a se passarem, o astro foi subindo e revelando seu rosto ofuscante.

De repente, Docus teve uma vaga recordação em sua mente, não uma lembrança de um fato ocorrido, mas uma lembrança de um sonho distante dos seus momentos da infância. Asas amarelas e tenebrosas que se mexiam em um ritmo assustador, esticando-se e encolhendo-se. Um gorgolejo esquisito seguido de um clamor agudo como uma lâmina que perfurava os ouvidos. Um líquido avermelhado a escorrer em direção ao solo, envolto em lama, em meio às garras do monstro. Ali brotara uma gota de sangue que depois saltara para o céu como uma fina fonte.

O issacerez respirou fundo e virou a face para a estrada à sua frente. Eram nove horas da manhã quando uma porteira grossa de madeira surgiu trancando Umilzend. Logo após, a estrada sumia em meio a arbustos e plantas rasteiras, tornando-se nada mais do que um caminho velho. Glaudir desceu de Sombra e abriu a porteira, emitindo um grunhindo incômodo no meio da fazenda. Depois de trancarem o portão, atravessaram a cerca farpada e seguiram com seu trajeto. As sombras do milharal não estavam mais ali, somente as de algumas árvores altas e separadas, todas velhas e cinzas.

Docus, procurando esquecer a lembrança, recordou o pesadelo que o fizera acordar assustado. Não distinguia as imagens direito, como se houvesse uma névoa enegrecida em seus olhos, mas os sons que ouvira eram bem fáceis de serem distinguidos. Sibilos, choro, passos, gritos. Na visão, o rosto rugoso e os dentes afiados eram bastante nítidos. “O que era? O que estava fazendo?”, pensou. Não conhecia nada sobre o ser, mas, de alguma forma, achava-o conhecido pelas descrições. “Talvez alguma coisa que eu tenha achado na Sociedade dos Issacerezes.” Docus apertou as crinas castanhas de Raio. Um calafrio atingiu sua espinha ao lembrar-se da velocidade do vulto e do grito agonizante. “Era só um pesadelo. Esqueça!” Entretanto, algo dizia para não o fazer.

Não havia flores ali, muito menos silvestres. Depois de uma parada para almoçarem e descansarem, os ivirezes voltaram à cavalgada. A Cordilheira de Andrus se erguia com imponência na frente deles como uma coluna de triângulos que serpenteava a terra. Acima dos montes, várias nuvens prateadas flutuavam em um deslize monótono, todas fracas como teias de aranha. Glaudir olhou desanimado para aquele incrível conjunto de montanhas, que para ele parecia mais um “terrível conjunto de dores nas pernas e tonturas irritantes.”

— Glaucor me contou uma lenda sobre ela — disse Tick, olhando do mesmo modo para a cordilheira. — Nos Tempos Primordiais, uma grande cobra cascuda se escondeu embaixo dessa terra e jogou blocos de lama para se cobrir. Mas ficou desajeitado e com muitas saliências, nascendo assim as montanhas. Não fique com medo da cobra, seu pai disse que ela morreu e hoje não restam nem seus ossos.

“Quem me dera fosse uma cobra”, pensou Glaudir. Glaucor contava muitas histórias para Tick, e ocorreu a Glaudir que ele talvez houvesse contado algo sobre os andarilhos das sombras. Pensou em perguntar sobre isso para o amigo, mas logo reparou que, já que Glaucor não falara nada para o próprio filho, com certeza não falaria a um ivirez rico e conhecido como Tick, o qual, além do mais, era um medroso.

À tarde, caminharam na maior parte do tempo para os pôneis descansarem. Quando o pôr do sol abrasou as nuvens, eles alcançaram a beira do rio e resolveram deitar para dormir com a visão das estrelas cintilantes rodeando a segunda noite de lua minguante.

O dia 28 de março nasceu bastante diferente dos outros dias. O céu estava coberto por várias nuvens densas e escuras que deixavam uma grande sombra na terra. Tudo estava calmo, como se o vento houvesse partido. Glaudir apertou a bengala mais forte na mão, olhando para o norte com um pressentimento e estranhando o silêncio que pairava no lugar.

— Que Morgoly nos proteja — disse para si mesmo.

Mas o dia posterior àquele foi ainda bem mais esquisito. Já haviam mudado o curso para o sul — pois o rio fazia uma pequena curva — e perceberam o quanto o silêncio podia ser perturbador. A correnteza transparente do rio estava quieta, silenciosa. Era possível ouvir até mesmo o barulho dos pedregulhos sendo levados. As nuvens sombrias vindas do norte esconderam totalmente o sol pálido, ficando cada vez mais pesadas conforme os ivirezes se aproximavam da Cordilheira de Andrus. Lá no alto, nenhuma ave voava, a não ser por dois corvos que apareceram de repente granando azares para os viajantes. De vez em quando, as folhas pontudas das poucas árvores dali eram balançadas pelo vento quente do sul, fraco e mudo.

Após o curto almoço, descansaram embaixo de uma árvore baixa. Uma simples lembrança fizera Glaudir pegar sua mochila e abri-la apressado. Seu pai havia dito que a arhevajika pressentia perigos e aquele dia estava muito esquisito para ele. Tirou umas folhas secas de um saquinho escuro. Mesmo velhas, elas mantinham sua coloração verde, possuindo finíssimas listras amareladas. Em seguida, encontrou o cachimbo cor de musgo e colocou a erva-mágica. Com um fósforo, — sempre guardava uma caixa no bolso — acendeu e começou a fumar. Uma listra fumacenta começou a sua subida ao céu. Glaudir inspirou. Quase caiu para trás com o susto que teve.

Largou o cachimbo de vez e começou a arfar desesperado. Algo entrara em sua garganta e ele tinha certeza de que não era nenhuma fumaça. Se essa era a sensação alegre que Glaucor falara, era uma alegria estranha. O objeto ficou preso, e Glaudir não conseguiu respirar. Começando a ficar roxo, Tick percebeu o estado do amigo, que segurava o pescoço numa tentativa de erguer o objeto para a boca. De súbito, deu uma tapada forte nas costas do ivirez e algo, banhado em saliva, saiu saltando para o corpo de Docus.

— Eca! — resmungou o issacerez, retirando a coisa enquanto Glaudir retomava a respiração.

Notou que aquilo era um papel em formato de rolo. Docus pegou-o com nojo, colocando-o em seguida no chão.

— Mas o que houve aqui? — gritou Docus, olhando irritado para Glaudir.

— Me desculpe — disse o outro, ofegante. — Tinha alguma coisa dentro do cachimbo e ficou preso na minha garganta.

— É, foi essa mesma coisa que saiu zarpando para cima de mim — resmungou o issacerez. — Podia ter mirado em outro lugar.

Tick levantou-se apressado e olhou fixamente para Glaudir: — Espere um momento. Foi seu pai que lhe deu esse cachimbo, não foi?

— Sim. Foi ele — respondeu Glaudir, sem entender bem o que Tick queria dizer com aquilo.

— A não ser que ele quisesse matá-lo engasgado, acho que “a coisa” era “uma coisa” que seu pai colocou lá dentro. — Terminando de falar, o ivirez saltou para a frente de Docus e viu o objeto ao seu lado. — Eu sabia! É um rolinho de papel prendido por uma cordinha. Talvez seja um bilhete.

— O que? — disseram Docus e Glaudir quase ao mesmo tempo, enquanto o último ia para perto do objeto. Era mesmo um rolo, pequeno e molhado de saliva. Curioso, Glaudir quis saber — O que será que há aí dentro?

— Seu cachimbo, seu bilhete, sua saliva. Então, é você quem vai abrir — sorriu Tick.

Glaudir não se importou com aquilo. Se fosse um bilhete como Tick disse, devia ter algo a ver com os segredos de Glaucor. Fazia sentido; o pai colocara o rolo para que, quando Glaudir fumasse o cachimbo, ele saísse (mas não tinha percebido o que haveria quando ele sugasse a fumaça). Talvez Glaucor já soubesse dos Selvagens e desconfiasse que o filho fumaria a erva próximo às montanhas para saber se estavam por perto, descobrindo assim o bilhete. “Acho que vão pedir para você fazer uma viagem à Cordilheira de Andrus. Peço que vá, pois assim, vai descobrir meus segredos”, dissera seu pai. Mas o que não fazia sentido era o porquê de Glaucor querer fazê-lo ir para a cordilheira.

O ivirez pegou o papel e tirou a pequena e fina amarra. Abriu e se surpreendeu, havia mesmo um bilhete lá dentro. Infelizmente, não era o que esperava.

O Brilho do Sol e da Lua emana do Ouro Pálido

Assim como seu Último Guardião lhes tem levado

E este há de guiá-lo às chamas, para livrar sua terra

G. BT. B

Pois é no fogo, filho do Ouro, onde tudo encerra

Mas cautela Último Guardião! A estrada oculta espinhos

E a dor espera os viajantes vagarem sozinhos. [1]

— Um poema? — questionou Docus ao ouvir a recitação de Glaudir. — O que isso tem a ver com o segredo de seu pai?

— Não faço a mínima ideia — Glaudir enxugou o papel na camisa, tendo cuidado para não rasgá-lo. — Mas tenho certeza de que é do meu pai. Há suas iniciais do lado direito em vermelho. G, BT e B, de Glaucor Bo-ticken Bautock.

— Guarde-o por precaução — interferiu Tick. — Entretanto, já é de tarde, e precisamos chegar logo na Cordilheira de Andrus. Só lá estaremos seguros e, além do mais, precisamos ficar acordados à noite. Vamos ter que eleger um vigia noturno para o caso de haver um perigo. Talvez dois, um para a primeira parte da noite e outro para a segunda. Revezar sempre é bom.

— Com certeza não vai ser você — disse Glaudir. — Você dorme muito fácil.

— Então, se é assim, — Tick fingiu estar ordenando. — vocês dois serão os guardas. Somos três, não somos? Já que eu não posso, muito menos os pôneis, montem guarda essa noite.

— Não vejo problema algum — disse Docus.

Glaudir concordou enquanto colocava no bolso o papel com os versos.

— Bem, então está decidido. Vamos cavalgar novamente. Bebam um pouco d’água e vamos partir.

— Sim, senhor nosso líder! — exclamou Glaudir seguindo para o cachimbo que ainda estava no chão.

Após beberem água dos cantis e de Glaudir guardar o cachimbo verde, montaram cada um em seus pôneis e reiniciaram a cavalgada. As nuvens dali os livravam do calor e do forte brilho do sol. As árvores foram diminuindo em quantidade rapidamente, os capins foram se tornando menores, mais secos. As pedras da beirada do rio se banhavam na lama. Às três horas da tarde, os viajantes fizeram uma curva abrupta para o norte a fim de seguirem o percurso do rio que vinha da Cachoeira Ant. A Cordilheira de Andrus se aproximava mais e mais conforme avançavam.

O pôr do sol chegou apressado. Glaudir foi o primeiro vigia noturno, sendo seu período estendido até a meia-noite. Depois dele, seria Docus. Nessa mesma noite, ocorreu uma das coisas mais estranha que haviam percebido ali. Quando foram se deitar, olhando para o céu, notaram que não havia nenhuma nuvem. Todas tinham partido e eles não sabiam para onde. As estrelas continuavam a cintilar no espaço negro ao redor da lua, cuja parte escura tomava quase a metade do astro.

Enquanto observava seus companheiros, Glaudir recitava mentalmente os versos que seu pai escrevera. De alguma maneira, o primeiro verso parecia familiar. “A luz do Sol e da Lua” lembrava-o de Sólut, cujo nome era a junção das palavras sohut e sluaht, como Glaucor dissera. Talvez, caso o pai fosse mesmo um andarilho das sombras, era preciso falar o poema para algum deles, que revelaria os segredos. Entretanto, Glaudir percebeu que, mesmo se pensasse a noite inteira, não ia chegar à conclusão nenhuma e decidiu deixar que as coisas acontecessem naturalmente. Além do mais, devia ficar atento no seu período de vigia. Os boatos acerca dos Selvagens Uriarques podiam ser verdadeiros e, com aquelas nuvens esquisitas que sumiam de uma hora para a outra, era melhor ficar de olhos bem abertos.

A manhã do dia 29 de março não foi nada primaveril. Embora fosse o décimo dia da primavera, um vento quente e abafado soprava do sul, esquentando o local. Como benefício, as nuvens tinham voltado, protegendo-os do calor do sol, e, curiosamente, elas não cobriam as montanhas nem aparentavam serem de chuva. Perguntaram para Docus se ele havia visto de onde elas haviam surgido, mas o issacerez não soube responder direito. Disse que fechara os olhos por um momento, quando a aurora aparecia no leste, e, de repente, as nuvens surgiram no norte como uma névoa de fumaça. Talvez se tratasse de um sonho, mas, fosse o que fosse, elas continuavam seu ritmo para o Sul, deixando uma enorme sombra na terra.

As montanhas se aproximavam conforme prosseguiam ao lado do rio. Perto delas, colinas cheias de pedras tentavam esconder uma enorme rachadura que partia o chão. Ali o sol iluminava forte, brilhando sobre a cordilheira e as baixas elevações. Às nove horas, Tick observou atentamente o rumo das nuvens e estranhou.

— Como isso é possível?

Docus perguntou a que ele se referia, olhando também para o céu, ao mesmo lugar onde o companheiro mantinha os olhos.

— O vento está vindo do sul — explicou ele. — e as nuvens estão indo para lá, bastante rápidas para nuvens que estão sendo empurradas.

— Será que é magia uriarque? Pode ser possível, pois essas nuvens estão escondendo o sol.

Glaudir se intrometeu na conversa: — Não sabia que uriarques praticavam magia.

— Raramente sim, e apenas alguns poucos. Mas se for uma mágica, é supreendentemente diferente das magias que eu imaginava fazerem. Os livros da Sociedade dos Issacerezes dizem que eles praticam mágicas selvagens e rústicas, como a dominação de feras, sombras e armadilhas. Nuvens para protegê-los do sol é esquisito e talvez fora do seu alcance.

— Seja o que for, temos que redobrar nossos cuidados — exclamou Tick. — e começarmos a treinar um pouco com nossas armas. Quero dizer, eu e Docus, a não ser que Glaudir queira aprender a manusear sua bengala.

Glaudir não se importou com o que ele disse, mas acrescentou: — Acho que acender uma fogueira vai ser perigoso, então é melhor nada de luz. E só dormiremos quando encontrarmos um esconderijo seguro que nos esconda dos olhos dos uriarques, ou ao menos um pouco. Espero que nossos pôneis consigam correr naquelas colinas cheias de pedras.

— Todos nós esperamos — disse Docus. — Mas você já deveria estar acostumado a esse tipo de coisa. Pelo que eu sei, você viajava frequentemente.

— E você também, issacerez. Eu viajava em segurança pela Estrada da União, Mankdrive e na Floresta das Grandes Árvores. Nunca precisei usar uma arma, nem fugir de problemas. Se bem que… Eu lembro de uma vez que, mesmo sem querer, eu corri. Parecia que uma sombra me perseguia, uma sombra de… — Glaudir parou no momento. O medo que havia sentido naquela noite agora era familiar. — Não pode ser!

— Sombra de que?

— De um cavaleiro — continuou. — Mas não quero mais falar sobre o assunto. Prefiro não lembrar.

— Por que você nunca quer falar sobre esses cavaleiros? — indagou Docus, desconfiado de algo. — Quando conversamos aquela noite sobre meu sonho, você também não quis falar.

— Não sei ao certo, embora isso pareça esquisito, mas falar sobre eles me dá uma sensação horrível e um mau pressentimento. Sinto como se fossem palavras de agouro. E também não quero assustá-los. Talvez, de alguma maneira, eles estejam nos seguindo. É isso o que acho.

— Por que nos seguiriam? — perguntou Tick. Puxou um pouco a espada para ficar mais fácil de tirá-la em caso de perigo.

— Bem, não foi isso que quis dizer. Talvez estejam seguindo Ant, o amigo misterioso do meu pai, pois eles atacaram-no, esse provável andarilho das sombras. E é muito possível que Ant tenha vindo para cá, talvez para matar Lúminar.

Ao ouvir a última frase, Docus se enfureceu: — Nem pensar! Sou um vandoriel, minha missão é protegê-la. — gritou. Chutou as ancas de Raio para aumentar seus passos.

— Já sabem o que vou dizer, não sabem? — disse Tick, cansado de repetir as mesmas palavras.

— “Desejos verdadeiros em mente” — lembrou Glaudir. — Embora seja difícil com tantos “talvez”.

— Mais uma coisa. — Ele saltou de seu pônei e pisou o chão com força. — Os Selvagens podem estar por perto à espera de três ivirezes apetitosos com três pôneis gordinhos.

Docus entendeu o que ele quis dizer com aquilo e também desceu de seu animal, para treinar a mira. Glaudir não precisou, visto que não tinha arma com qual treinar, torcendo para que sua bengala fosse sólida o suficiente para causar dor nos uriarques inimigos.

A tarde só chegou após as várias quedas da espada e os vários erros das flechas. As nuvens escuras e o vento quente foram sua plateia. Como o Velho Coris havia sugerido, Docus recolheu todas as flechas que atirara para guardá-las. O tempo passava lentamente, em contraste com os calos que surgiam nas mãos de Tick, enquanto o silêncio os afogava cada vez mais. As montanhas colossais aumentavam de tamanho, as mais altas com o seu cume ainda branco, pois o inverno havia sumido há alguns dias apenas. Entre elas, destacava-se Amonhant, o maior monte de Haldom que, mesmo atrás de várias montanhas, era facilmente visto entre as nuvens enevoadas com o seu pico reluzente. Quando o sol estava bem baixo, a cordilheira recebeu um tom alaranjado e os cumes resplandeceram. O astro descia ao passo que as sombras daquelas elevações ficavam mais compridas e negras. Pena que os ivirezes estavam a leste da Cordilheira de Andrus porque, se estivessem a oeste, teriam a visão deslumbrante das montanhas douradas por causa do pôr do sol.

A noite chegou como um cobertor negro repleto de vaga-lumes. Não haviam parado para dormir, uma vez que deviam encontrar um lugar seguro para descansar. Estava escuro e as estrelas se escondiam nas nuvens nebulosas, mas a maior parte dessas nuvens já estavam sumindo. Por sorte, os ivirezes acabaram encontrando uma encosta íngreme com uma barreira alta de terra e ali puderam deitar, cobrindo o chão com lençóis. Glaudir foi o primeiro a montar a guarda e, coberto pelo cobertor devido à brisa gelada, observava a paisagem erma. Notou que haviam esquecido de amarrar seus pôneis em algum lugar, ou ao menos prendê-los para que não fugissem, mas supunha que não precisariam. Se um uriarque aparecesse, perderiam tempo tentando desamarrá-los. Os três animais dormiam um ao lado do outro em perfeita paz, sem um mínimo movimento, talvez por causa do cansaço da viagem.

Glaudir levantou-se — pois as costas doíam de tanto ficar sentado — e foi em direção à barreira. Docus e Tick estavam bem ali, dormindo com a face para o lado, e, bastante próximas deles ficavam suas mochilas. O ivirez sentou-se novamente, dessa vez ao lado da mochila que usava, e apoiou as costas na barreira. A terra fria o fez tremer. Encolheu-se no cobertor e voltou a olhar a paisagem cinzenta e sem vida, atento a cada movimento ou barulho. Não se via árvores, tampouco grama ou capim, apenas alguns arbustos que, à noite, eram sombrios e sem cor. O vento assobiou, movendo uma fina poeira ao longe, sendo o único a quebrar o silêncio daquela escuridão. Mas durou pouco. Glaudir bochechou. Observar um lugar desértico, à noite, com todos os seres vivos dormindo não era nada bom para alguém que devia ficar de vigia.

O ivirez fechou os olhos e respirou fundo. Dormir era tentador. Um grito agudo o acordou. Era uma raposa. Avistou o vulto pequeno e rápido correndo entre os arbustos cinzentos. Não demorou muito para que ela sumisse da visão. Pelo visto, não havia nenhum perigo ali além da raposa, a qual só poderia assustá-los. Docus e Tick dormiam com suas armas ao lado da cabeça, prontos para atacarem ou se defenderem — embora o mais provável fosse correrem. A questão que corroía os pensamentos de Glaudir era: daria tempo de salvarem seus companheiros pôneis? Ele não sabia responder. Seria difícil o percurso de fuga, dado que próximo dali haviam várias colinas repletas de pedras escorregadias. Teriam que avançar devagar e com cuidado. No entanto, ele ainda mantinha uma esperança de protegê-los. Contava com a rachadura das colinas, aquela enorme cicatriz e, para lá, era seguro levá-los. Mas como chegariam a ela antes de os Selvagens lhes alcançarem, lhes verem ou, possivelmente, lhes encurralarem?

Uma pedra caiu ao longe. Glaudir tremeu dos pulmões aos braços e prendeu a respiração. Olhou para todos os lugares, mas não encontrou nada. Essa escuridão era a mesma de antes? Um pássaro cantou, repetindo sua cantoria três vezes, mas estava perdido em algum ponto ao longe. O ivirez levantou-se e tentou aguçar a visão. Colocou as mãos nas orelhas para atrair os sons. Tudo permanecia quieto como antes. Entretanto, o assobio do pássaro soou novamente, bem mais alto que o anterior. Todas as aves canoras já deviam estar dormindo a essa hora e não havia dúvidas de que o sol ainda demoraria a aparecer.

Glaudir abaixou-se e foi até seus companheiros, supondo que aquilo poderia ser um tipo de comunicação uriarque usada à distância. Acordou primeiro Docus, balançando-o pelo ombro e chamando baixinho o seu nome.

— O que houve? É o meu turno?

Docus estava assustado e, talvez por instinto, segurou a aljava e o arco que estava ao seu lado.

— Ouça e, por favor, fale baixo — ordenou Glaudir em um sussurro.

O canto do pássaro voltou a se repetir e, novamente, foi três vezes. Com certeza não era de uma coruja ou outra ave noturna. Glaudir não precisou falar para que Docus entendesse. O issacerez ergueu-se e foi na direção de Tick.

— Acorde os pôneis. Temos que sair daqui o mais rápido possível. Esse lugar não está mais seguro.

— Como assim? A barreira pode nos esconder — indagou o outro.

— Tem certeza? — disse Docus enquanto despertava Tick e depois sugeriu aos dois: — Venham! Eu estava acordado, ouvindo o som da terra o tempo todo, e senti algo vindo na nossa direção.

Os três pôneis levantaram-se apressados sem que Glaudir tivesse que fazê-lo. Os animais agitaram-se, sentindo o perigo. Docus subiu a barreira de terra e os companheiros o imitaram. À frente deles, faíscas se moviam cambaleantes em sua direção, e o vento trazia vozes grossas e bárbaras. A sombra da noite impedia que eles vissem quem seguravam os brilhos de fogo, mas sabiam que eram Selvagens em marcha.

Atrás deles, várias pedras rolaram.

— Tem alguém ali atrás — exclamou Glaudir. — Eu ouvi pedras rolando antes. Tem uma rachadura entre as colinas que acho que pode nos ajudar.

Com o arco na mão e a aljava nas costas, Docus desceu escorregando da barreira e os dois o seguiram. Tick pegou sua arma e todos puseram suas mochilas nas costas, saltando no dorso dos pôneis logo depois. Rápidos, porém silenciosos, os animais foram cavalgando para a tal rachadura.

A lua minguante saiu dentre as nuvens do céu. Seu brilho fantasmagórico produziu sombras apavorantes nas montanhas. Agora, a rachadura parecia mais um riacho fino serpenteando as colinas. Os assobios haviam acabado, porém isso não tirou nem enfraqueceu o medo dos ivirezes. De vez em quando, barulhos abafados sussurravam atrás deles, mas não voltavam a se repetir como faziam as cantorias. Os pôneis continuavam agitados e seus montadores acariciavam suas crinas, pronunciando palavras de conforto para acalmá-los. Saltador, Raio e Sombra, atentos a tudo, tentavam não fazer nenhum som de cascos enquanto avançavam no meio dos arbustos espinhosos. Mas ao chegarem às colinas, embora as primeiras fossem baixas, seus cascos bateram nas pedras sem querer. Os corações paravam a cada batida.

Tick tremia diante dos sons ao seu redor. Não era por menos, ele era o último da fila e lutava para manter o ritmo e não se distanciar dos outros, uma vez que Raio e Sombra eram mais rápidos do que Saltador. Afrouxou a espada e notou Docus, o primeiro, já guardando uma flecha na mão junta do arco. Com apenas uma segurava as rédeas de Raio. A rachadura foi se aproximando e nenhum deles entendia por que as sombras pareciam aumentar e se escurecer mais. Todos pensavam se tratar de um engano dos seus olhos e torciam para ser.

Uma nuvem passou pela lua. Tudo ficou negro. Foi aí que Tick quase caiu do pônei. No mesmo instante, uma batida no solo foi trazida pelo vento. Talvez fosse uma ilusão de sua mente apavorada, mas ela voltou a se repetir. “Malditos calafrios!” Os barulhos eram baixos, seguiam sempre o mesmo ritmo, e aumentavam, ou se aproximavam. Toclof toclof toclof. Tick olhou para seus amigos. Estavam quietos e com os olhares fixos na rachadura. Não percebiam os sons. O ivirez virou o rosto para trás, mas não viu nada de diferente, como sempre não havia. Apressou Saltador e, alcançando Glaudir e ficando ao seu lado, perguntou bem baixo:

— Está ouvindo essas batidas? — Glaudir ficou atento e prestou atenção. Apenas uma delas lhe fez arregalar os olhos. Tick torcia para que ele soubesse de que se tratava, mas foi continuando — Pensei que fossem tambores no começo, mas são totalmente diferentes.

— Tambores?! Não! São passos! E estão chegando mais perto — exclamou o companheiro.

As palavras eram mais um calafrio, inclusive para Glaudir. Por instinto, os dois olharam para o caminho percorrido. Distinguiram três sombras de passos fortes, uma ao lado da outra em rápida correria. Elas corriam com suas pernas compridas e negras, tão velozes que um piscar de olhos lhes fez alcançar as encostas.

— Docus! Eles nos acharam! — gritou Tick, batendo nas ancas de Saltador.

Os animais saltaram pelas pedras, fugindo dos Selvagens que insistiam em persegui-los. As sombras dos uriarques aumentavam e ganhavam mais nitidez. Dois tinidos sibilantes se distinguiram no meio das risadas diabólicas. Por sorte, nenhuma das flechas acertou o alvo, quebrando-se nas pedras.

A rachadura foi recebida com um suspiro de alívio dos ivirezes, ao mesmo tempo que com um resmungo. Ela era fina e precisaram ir um ao lado do outro, como tinham feito no milharal de Umilzend. Teriam que ir ainda mais devagar. Não conseguiam avistar os uriarques escondidos nas colinas, mas os passos frenéticos deles continuavam a soar junto de pedras rolando. Foi difícil seguir a trilha. De quando em quando, esbarravam-se em rochas e em barrancos que os obrigava a mudar de direção.

Sem nenhuma prévia, um grito rasgou a noite acompanhado por outras batidas, essas últimas bem mais semelhantes a tambores do que as dos passos dos Selvagens Uriarques. Algo branco zarpou pelo céu da rachadura e sumiu nos seus muros, sem dar qualquer esperança aos ivirezes de saberem o que era. Não pararam de fugir, embora os sinais dos inimigos a se aproximar houvessem desaparecido. Isso foi tomado por uma série de tinidos de espadas e flechas que assobiavam no ar. Entre gritos furiosos e praguejadores, as setas caíram no meio do caminho apertado, e, pelo visto, os três ivirezes estavam com muita sorte, já que nenhuma sequer passara perto deles ou de seus animais.

Os gritos prosseguiam quando Glaudir falou para seus companheiros: — Tem alguma coisa acontecendo entre os Selvagens. Acho que está acontecendo uma confusão entre eles.

— De que isso importa? — lembrou Docus. — O que importa mesmo é sairmos daqui vivos, ou ilesos ao menos.

— Concordo totalmente — disse Tick, tomando a frente, mas parando, não porque queria, e sim porque uma parede de terra encerrava o percurso bem ali. — E agora? Estamos presos!

— Concordo totalmente — disse uma voz bárbara, imitando-o.

As palavras vieram de cima. Lá, no topo da parede, estava um vulto forte armado com sua espada. A lua minguante saiu de detrás da nuvem. O corpo rugoso do vulto se cobria em trajes velhos, semelhantes à uma armadura enferrujada. A sombra saltou e pisou forte no chão da rachadura. No mesmo momento, deu um berro arrepiante e caiu duro e morto com a cara na terra e a boca escancarada.

Sem fazerem ideia do que havia acontecido, os ivirezes se entreolharam. Pelo menos, Glaudir e Tick assim o fizeram, pois Docus saltou de Raio e apontou para a frente com a mira feita.

— Quem é você? Não queremos lhe fazer mal mas largue a arma.

Tick e Glaudir mantiveram os olhos para onde mirava o issacerez. Outra sombra, mais esguia, ganhava forma. Tick tirou a espada e também desceu do seu pônei, apontando-a, embora não fosse capaz de controlar seu tremor.

— Esperem! Não sou seu inimigo — exclamou o estranho.

— Jogue a arma no chão, agora!

Docus ameaçou o outro, esticando ainda mais a corda do arco.

— Não, Docus! Não faça isso — interrompeu Glaudir. — Eu acho que o conheço.

O ivirez desceu do pônei e aproximou-se do suposto inimigo. A sombra dos dois muros de terra da rachadura não lhe deixava ver direito o rosto, mas, de fato, ele já havia visto-o antes, e quase tinha certeza de quem era.

— Ant[2]? O que está fazendo aqui?

— De que me chamou?! — resmungou o outro.

Era mesmo Ant. Glaudir conseguiu reconhecê-lo e o suposto inimigo chegou mais perto, mostrando seu rosto escuro. Os cabelos pretos caíam até os ombros, e sua espada ainda estava na mão, mas abaixada e sem posição de ataque.

— Então, esse é o tal andarilho das sombras? — indagou Docus, porém ainda sem se convencer de que não era perigoso. Tick parou de tremer e colocou de volta a arma na bainha. “Se é um ivirez, não vai nos fazer mal.” Ant pareceu surpreso e deu um passo para próximo do issacerez, no entanto, recuou em seguida com o arqueiro esticando ainda mais a corda fina.

— Por favor, evite falar sobre isso à noite — aconselhou ele. — É muito perigoso.

— O que está fazendo aqui, Ant? Ainda não me respondeu — disse Glaudir, afastando o arco de Docus com a mão.

— Apenas de passagem. Mas a questão que quero fazer para você é a mesma.

— Apenas de passagem, e isto é verdade.

Tick chegou mais perto e lembrou-lhes: — Estamos presos aqui e os Selvagens podem chegar a qualquer momento.

— Temos um bom tempo para escapar — exclamou Ant — E nem precisamos subir a parede. Venham comigo! Se assim preferirem.

— Não temos outra opção mesmo.

— Claro que têm. Serem mordidos e assados nas fogueiras dos uriarques.

Subiram de volta em seus pôneis. Ant os levou para o lado da passagem, onde havia uma outra parede. Entretanto, para a sua alegria, uma fenda se escondia na rocha negra. Parecia uma gruta. Não era muito aberta, porém os pôneis conseguiriam passar se fizessem um esforço. Os animais entraram com dificuldade no túnel. Ali só havia escuridão. Ant foi na frente — pelo menos era nisso que acreditavam, pois não podiam nem ver sua própria mão se a aproximassem do rosto. Embora tivessem subido em seus pôneis, precisaram descer novamente para não baterem a cabeça no teto rochoso.

— Sigam sempre em frente — disse Ant. Sua voz ressoou alta dentro da gruta.

O solo de pedra era escorregadio e gelado, se elevando conforme avançavam. Não havia o mínimo de luz, por isso os ivirezes contavam com todos os outros sentidos, ignorando a visão. Aos poucos, uma faixa de luz foi aparecendo mais à frente. Era a saída, e Ant ficou no meio dela como uma rocha parada. Sua espada estava erguida. Pensando que ele não estava parado, os três ivirezes esbarraram-se nele. Ant os empurrou levemente para trás, sem olhá-los.

— Façam silêncio.

Obedeceram. Uma escuridão cobriu a saída iluminada e souberam, sem sombras de dúvidas, de quem era. O uriarque respirava alto e apressado, estava exausto. Praguejou na sua língua, entrando desajeitado na passagem, como se também fugisse de alguma coisa. Glaudir, Docus e Tick se esquivaram para trás, mas Ant continuou fixo e silencioso, sem um mínimo movimento. Houve um curto momento de silêncio, depois um sussurro abafado e molhado, um arfar e uma batida forte no chão de rocha.

— Ant! — quase gritou Glaudir, mas compreendeu rápido que o cadáver parado e duro no solo não era do ivirez. Era do Selvagem.

— Venham! Já estamos no fim da passagem — chamou Ant.

Os outros saltaram o corpo, que ainda mexia os pulmões em seu último suspiro, e os pôneis os seguiram. Saindo da passagem, a Cordilheira de Andrus os aguardava com a lua em seu céu negro. Um burburinho de água murmurava um pouco à frente. Estavam ao lado do rio outra vez e a salvos, mas ainda amedrontados. Os uriarques voltaram a gritar. Não eram apenas três Selvagens — ou provavelmente um, pois Ant havia matado dois, eram muitos. Todos estavam brigando entre si em cima de uma colina. Arrancavam as cabeças com seus machados e atiravam nos olhos dos outros com suas setas. Ninguém estava do lado de ninguém, apenas matavam sem dó os companheiros de seu grupo (se é que havia companheirismo entre os Selvagens). Os cadáveres rolavam pelas pedras das encostas e desciam banhados em sangue.

— Lúminar… — Ant arregalou seus olhos grandes.

Uma sombra engoliu as colinas onde os uriarques brigavam, como uma enchente negra e veloz. Silêncio. Nenhum som. Os ivirezes observavam boquiabertos, sem entender nada que estava acontecendo ali. Nenhuma espada tinia. Nenhuma flecha zunia. Todos os Selvagens Uriarques haviam ficado quietos. O brilho amarelo e vermelho de seus olhos miravam o céu.

Uma risada congelou os ossos de todos: — Tolos! Pensastes que escaparíeis da minha ira, servos de Grohktiuk? Vossa hora já fora marcada com sombra, fogo e sangue. Aproveitai vosso último suspiro!

Um assobio. O silêncio que antes os envolvera foi tomado pelos seus gritos de agonia. De alguma maneira, Glaudir sentiu pena daqueles seres, embora fossem maléficos e devoradores de homens. Mesmo sem verem direito por causa da nuvem negra, sentiam que algo terrível estava atacando os uriarques. Torciam para jamais ver o que era. Tick virou o rosto e gritou:

— Olhem! Estão vindo em nossa direção!

Ant saltou em Sombra e Glaudir afastou-se para trás dele. Os outros montaram em seus animais e os fizeram correr o mais rápido que conseguiam. Três brilhos de fogo arranhavam o céu da noite como flechas afiadas. Desesperados, os ivirezes não olharam para trás, temendo o que haveria ali. Os seres luminosos, iguais a estrelas cadentes e flamejantes, passaram sobre suas cabeças com o barulho de uma fogueira, estalando e iluminando tudo ao seu redor. Sua fumaça preta e fétida apagou as constelações e maculou a lua minguante. Sibilou qual ferro ardente ao tocar o chão. Glaudir tomou coragem para olhar, embora temesse muito o que estava prestes a ver. Agarrou-se à cintura de Ant e virou o rosto. Um círculo de fogo devorava a terra e vomitava sua fumaça negra no ar.

[1] Em hamarin fica assim:

Ta slust dut sohut’i dasluht sayduen Urol’s-ethalad

Ugiaceud Ufina-gurhadan phoitust porhatad

Kit’giutu aparo Rharhod, ussavumhad ceud halén

G. BT. B

Ucenduen Rharhod, Urolfilli, utud’cega umahend

Uvazy Gurhadan! Is opunt ta’s-ethad ekond

Agar-uda is amhadint’rhawaga sos tu paront.

[2] Ant é semelhante mas não deve lembrar ant (formiga, no inglês). Simplesmente é um nome de um monveran, que não parece nem um pouco com uma formiga.

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SUMÁRIO

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Paulo Moreira

Brazilian pharmacist in loved with History, Fantasy and Ecofiction. Author of The Blood of the Goddess. I write about nature in poems and fantasy stories.