Ilustração com traços impressionistas em preto e branco. Uma mulher sentada sobre uma colina observa a lua cheia. O vento balança seus longos cabelos e a grama da colina.
Ilustração gerada por IA.

O Sangue da Deusa — A Mensagem dos Issacerezes

Paulo Moreira
19 min readFeb 21, 2024

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O Viajante era como o chamavam, mas seu nome era Glaudir Glaucor Bautock.

Era o dia 21 de Março de 999 da Era dos Reinos.

O segundo dia de Primavera continuava frio. Glaudir caminhava à beira do Lago Morgoly, seus passos sussurravam na grama comprida. Os lírios brancos estavam agitados, empurrados pela brisa do Norte, enquanto as árvores cinzentas cochichavam no sopé das colinas. Como sempre, os olhos verdes de Glaudir se prendiam na superfície reluzente do lago. Dois cisnes deslizavam despreocupados sobre as águas, desmanchando suas nuvens trêmulas e pálidas.

— Mãe… — suspirou ele, antes de decidir voltar para casa.

Caminhou pesaroso entre as casas dos ivirezes, separadas umas das outras por árvores ou por uma cerca, algumas vezes cercas vivas. A Primavera havia pintado todas as plantações de um verde vívido. As estradas e, principalmente, os muitos caminhos, passeavam sob as sombras das árvores repletas de ninhos pequeninos de beija-flores.

Glaudir afastou as águas lívidas do Lago Morgoly de sua mente e respirou o ar fresco da vila em que morava. Todas as casas dali eram semelhantes. Caminhos de pedra saiam das suas portas e seguiam em direção a pequenos portões de madeira. A grama, cortada baixa, cobria o chão de verde em todos os lugares. As casas não eram muito espaçosas, mas seus quintais eram compridos e retangulares, cercados por cercas baixas que separavam uma casa da outra.

A vila era chamada de Vila Verde, ou Iverhili na língua dos ivirezes, talvez por causa da grama. Suas moradias eram caras, pois eram vendidas num leilão, e os moradores não podiam ficar fora durante dois meses comuns sem deixarem um bilhete ou uma carta dizendo que voltariam — e isso só acrescentava apenas dez dias a mais para que os moradores retornassem a tempo. Assim, para não perderem a moradia, era comum os moradores deixarem uma ou duas pessoas ali.

Glaudir abriu a pequena porteira de sua casa. Ao lado dela caminhava seu pai, Glaucor, com 93 anos de idade — o que não era muito velho para os ivirezes, muitos deles já haviam chegado aos cento e dez e até mesmo cento e quinze anos de idade. O pai carregava na mão sua grande companheira, não uma esposa ou uma amiga, mas uma bengala pesada e marrom. Era bem sólida e, embora não parecesse, era a arma de proteção de Glaucor. Se alguém o incomodasse, ele ameaçava bater nele com a bengala. Os outros recuavam no mesmo instante. Sabiam que o objeto, inofensivo de vista, era resistente o bastante para quebrar uns de seus ossos. E a maioria das pessoas dali eram idosas e frágeis.

Por isso, Glaucor era chamado de velho ranzinza por quase todo mundo de Iverhili. Todavia, seus poucos amigos o consideravam bem-humorado, e era comum rirem ao conversarem com ele. Glaudir sabia que aquele mau-humor e bom-humor repentinos serviam para esconder seus segredos, segredos guardados a sete chaves sobre sua vida antes do nascimento do filho. E Glaudir quase nunca o importunou, não cabia a ele perder tempo com isso, mas é certo que ele mantinha acesa uma pequena curiosidade.

Havia alguém que Glaudir tinha certeza que conhecia os tais segredos. Não sabia nada sobre essa pessoa, de onde era, tampouco quem era, embora o mesmo visitasse Glaucor algumas vezes, sempre à noite enquanto Glaudir dormia. Sem saber seu nome, o ivirez lhe dera o nome de Ant, pois tinha raiva dele.

Na noite daquele dia, Ant visitou Glaucor novamente.

O frio estava mais intenso, e a janela do quarto de Glaudir batia, como se algo tentasse entrar. Sabendo que era apenas o vento, o ivirez não estava assustado. Na verdade, ele não tinha muitos medos quando comparado à maioria dos ivirezes. Temia os monverath, como todos, e lugares altos, em especial, lhe deixavam tonto. Mas já há um tempo, ele começara a experimentar um novo medo, que o perturbava. Agora, seu pior pavor era ficar sozinho, bem estranho, pois ele costumava viajar só. Mas não falo desse tipo de solidão. A primeira visão que temos ao ler essa palavra é a de uma pessoa perdida num deserto ou algo parecido, no entanto, não era essa a solidão temida por Glaudir. Ele temia estar sozinho devido ao abandono, talvez por ter perdido sua amada mãe, Ahrozidir.

Porém, é preciso voltar à noite naquela casa. Glaudir não dormia. Tentava ouvir a conversa de seu pai dali do quarto, mas Ant e Glaucor conversavam muito baixo, e o ivirez ouvia meros sussurros. Estava sem sono, e logo um pensamento inesperado surgiu em sua cabeça: seguir o Ant. Uma curiosidade começava a movê-lo, e posso dizer que a curiosidade é um grande perigo aos ivirezes, e não vai só mover esse ivirez, bem como vários outros ao longo do tempo.

— Sim. Eu vou segui-lo — afirmou Glaudir para si mesmo.

Glaucor logo se despediu de Ant e foi dormir; nesse mesmo momento Glaudir saltou da cama como um esquilo e, com passos muitíssimos silenciosos, saiu do quarto e foi à porta de saída. Pegou uma chave e abriu-a. Trancou-a em seguida e olhou o céu negríssimo. A lua cheia brilhava quase no centro do céu; era mais ou menos onze horas. Ela apagava algumas estrelas por causa de seu brilho intenso. Glaudir tremeu, pois o frio persistia, assobiando sobre a grama cinzenta. Tudo estava quieto, e os poucos postes, três mais exatamente, já estavam com suas chamas se apagando. Glaudir olhou para a estrada e avistou um vulto escuro andar apressado. Era Ant.

Abriu o portão rápido e, deixando-o aberto, correu pela estrada para alcançar o outro. No entanto, sabia que não devia chegar muito perto para que ele não percebesse sua presença. Correu pelas ruas de Havis por um tempo e, ao chegar perto de Ant, passou a caminhar de passos largos. Não o tirava de vista, nem por um segundo. Ant podia sumir facilmente se quisesse.

Mas algo desviou o olhar de Glaudir em um momento. Latidos vibrantes ao lado o assustaram, junto de grunhidos furiosos. Virou-se e viu três cachorros negros e fortes, amarrados do outro lado de uma cerca. Ali morava Tomín, um dos melhores guardas de Havis, que usava os seus três cães para perseguir ladrões. Os animais saltavam, tentando romper as cordas que os prendiam pelo pescoço. Mesmo sabendo que os cães estavam amarrados, Glaudir apavorou-se e tentou correr uma outra vez.

Um assobio cortou a noite e Glaudir foi empurrado. Caiu no chão com uma espada apontada para seu peito.

— Estava me seguindo? — gritou seu dono. Era Ant que o observava com seu rosto escuro, ameaçando-o com a ponta da espada: — Por que? Está servindo aos issacerezes ou é um deles?

— Não! Não! — gemeu Glaudir. — Não sirvo a nenhum issacerez, nem sou um. Sou Glaudir, filho de Glaucor.

— Filho de… — disse Ant, furioso, porém logo a ira sumiu, dando o lugar a uma gargalhada. — Ah! Glaudir, o que está fazendo aqui? É tarde da noite.

— Sim, eu sei, mas é que… — Glaudir não soube o que dizer. Levantou-se e sacudiu a roupa para tirar a poeira.

— Cuidado com os cães de Tomín — disse Ant. — São perigosos e já me perseguiram uma vez. Você estava me seguindo, não estava? Quer saber o que eu falei para seu pai.

— Bom, é verdade. Mas também quem é você. Quem é você? Qual é o seu nome?

— Vá para casa — disse Ant. — Os cães vão torar as cordas a qualquer momento.

— É um andarilho das sombras, não é? — declarou Glaudir, mas esquivou-se para trás por precaução

— O que disse? Como sabe sobre esses andarilhos?

— Sempre viajam à noite e secretamente. São discretos, dizem que são ladrões, servos dos vultos, assassinos…

— O que?! — Ant voltou a se enfurecer. — Ouça meu conselho, vá para casa agora e viva sua vida.

— Não tenho medo de cachorros! — exclamou Glaudir. — Quero explicações.

— Não é isso que deve temer! Vá! É perigoso. Tem algo mais aqui.

Um relincho sussurrou com o vento junto de patadas rápidas. Glaudir apavorou-se e, mesmo sem querer, correu de volta tremendo de medo. Sentiu calafrios e uma vontade de gritar, mas o som não conseguia escapar de sua boca. Os cachorros pararam de latir, mesmo assim, continuaram agitados. Toraram as cordas e correram, não atrás de Glaudir, mas de ninguém. Partiram separados e sem rumo, sumiram nas sombras da noite amedrontados como o ivirez.

No momento que corria, Glaudir arrumou coragem para olhar para trás. Viu vultos escuros e armados em cima de cavalos magricelos. Ant estava ali, à frente deles, a espada na mão. Em um grande brilho, sumiu rapidamente como mágica.

Glaudir chegou em casa em poucos minutos; a velocidade que ele correra fora tanta que ele parecia um rato fugindo de um gavião. Ao atravessar a pequena porteira, o medo, ou melhor, o pavor diminuiu, e o ivirez fechou-a com um baque. Entrou em casa devagar, os passos silenciosos para não acordar seu pai. Trancou a porta que rangia, o que deixou Glaudir bastante irritado, e foi em direção ao seu quarto pela casa escura. Não chegou a andar muito.

— Você foi segui-lo, não foi? — Era impossível não reconhecer aquela voz séria. Glaudir virou-se e viu Glaucor sentado na cadeira e com a bengala nos joelhos. Acendia uma vela, colocando-a em cima de um pequeno armário de três gavetas.

— Me desculpe — disse Glaudir. — Eu queria saber quem ele era. Pode ser perigoso.

— Sim, ele pode — disse Glaucor. — , mas não é se ele quiser. Não vou reclamar com você por causa disso, embora tenha saído à noite. As noites de agora não são como as de antigamente. São mais calmas, entretanto, os perigos estão mais ocultos.

— É verdade. Bem, vou dormir. Boa…

— Não diga boa noite! Não agora. Um issacerez me visitou essa manhã, quando você tinha saído. Me disse para você ir para a Casa Temporária1 do Lago Morgoly. Acho que vão pedir para você fazer uma viagem à Cordilheira de Andrus. Peço que vá. Está na hora de você saber de umas coisas, sobre mim, sobre você. Não as contarei. Você vai descobrir com os próprios olhos. Mas também peço que não obedeça aos issacerezes, pelo menos não todas as ordens.

— Amanhã de manhã eu vou — disse Glaudir, virando-se ao quarto. — Boa no…

— Ainda não! — disse Glaucor. Levantou-se com a bengala em pé, apoiando-se nela. Ergueu o braço para Glaudir, mostrando um objeto transparente na mão. — Tome-o.

Glaudir obedeceu e olhou atentamente. Era um círculo de vidro, límpido, talvez cristal, algo do tipo ou semelhante. As bordas eram azuis com doze pedras-safira brilhantes. — Olhe para o espelho e diga-me o que vê.

O ivirez segurou o objeto com a mão direita esticada. Observou com cuidado, mas não via nada além de sua mão do outro lado.

— Não vejo nada.

— Preste mais atenção — pediu Glaucor.

Glaudir obedeceu novamente e pôde notar. Havia pequenos brilhos no vidro, pálidos e trêmulos, e o espelho ficava cada vez mais escuro. A lua cheia repousava prateada no céu noturno. Uma colina surgiu, vestida de gramíneas sem cor, e sobre ela uma mulher contemplava o brilho da lua. Seus cabelos negros e lisos flutuavam na brisa da noite. Glaudir sentiu seu perfume suave, frio. O rosto branco e os lábios vermelhos estavam alegres, podiam estar sorrindo.

— Estou vendo as estrelas brilhando na noite. Tem uma lua cheia, uma colina, e lá uma mulher passeia, olhando para a lua. Vejo a minha mãe — murmurou Glaudir. O medo que o trouxera para casa desapareceu. O filho sorriu, tímido.

— Ahrozidir… Eu também a vejo — Glaucor sussurrou. — Ahrozidir significa “a rosa das elevações” ou “colinas”, entende? O que você segura é Sólut. O nome significa “lua e sol” de sohut e sluaht. Foi criado pelos povos alvânicos como presente para mim e sua mãe. Pode me ver, se quiser, ou vê-la. Na verdade, pode ver seus entes queridos falecidos também.

— Povos alvânicos? Você tem um amigo alvânico? Há muitas coisas que você me esconde.

— Vai descobrir na Cordilheira de Andrus todos os segredos. Fique com Sólut. Você sente muita falta de sua mãe, sei disso, e ele vai mostrá-la. Leve-o consigo em sua viagem, que será grande, pois não precisarei mais dele.

— Tudo bem — disse Glaudir. — Boa noite.

— Sim. Agora é boa noite. E obedeça ao que eu disse. Vá, embora não goste de montanhas.

Glaudir dirigiu-se ao quarto, onde dormiu bem, com o espelho a seu lado e a presença da mãe a alegrá-lo profundamente. Esquecera os cavaleiros estranhos que tinha visto e não pensara como Ant poderia escapar deles, pois com certeza, os montadores não eram bons com aqueles cavalos e roupas escuras. Na verdade, pareciam mais sombras em vestes rasgadas.

Quando o dia amanheceu, trazendo os raios de ouro do sol, Glaudir acordou disposto a ir à Casa Temporária. Deu bom dia ao pai e fez um curto desjejum; em seguida, saiu. Seguiu uma estrada, não muito longa nem muito curta, que passava bem próxima ao lago de águas calmas. O tempo estava bom, quieto. Não havia nuvens no céu e, voando nele, os pássaros cantavam baixinho. O orvalho da madrugada ainda reluzia nas plantações em gotículas de arco-íris pequenos e brilhantes. Logo, Glaudir chegou à estalagem.

A Casa Temporária ficava ao lado do Lago Morgoly em uma pequena elevação. Era grande. Ficava entre algumas árvores baixas, nas quais a brisa matutina balançava suas folhas. As telhas vermelhas cobriam a casa de janelões compridos e fechados com cortinas esvoaçantes. Havia uma placa bem à frente de onde Glaudir se aproximava. Era alta, pendurada num poste, e exibia os desenhos dos monverath Hávis e Morgoly em sua superfície. Hávis era um monveran azulado, cujas asas se esticavam para cima, e Morgoly era negro, com as asas na mesma posição.

Assim que chegou à porta alta e já aberta, cinco issacerezes saíram de dentro da Casa Temporária. Vestiam roupas rubras, com listras douradas nas bordas das mangas. Usavam botas grossas e marrons, típicas de viajantes, algumas sujas e enlameadas, e no peito esquerdo exibiam um triângulo de ouro, onde um monveran amarelado erguia suas asas e apontava a cauda para baixo (tanto que poderia parecer uma cruz para nós). Seus cabelos claros alcançavam os ombros, mas não cobriam as orelhas pontudas, passando a impressão de que aqueles ivirezes eram pequeninos alvanes.

Apressados, os issacerezes reverenciaram da maneira ivirez, abaixando a cabeça com a mão direita no peito. Glaudir fez o mesmo, e um dos ivirezes começou a falar:

— Glaudir Glaucor Bautock, O Viajante, não é mesmo?

— Sim, sou eu — respondeu Glaudir. — Meu pai disse que vocês me chamaram.

— Não deve saber direito o que queremos…

“Na verdade, eu tenho um bom palpite”, pensou Glaudir, mas só pensou.

— … Você gosta de viajar.

— Bem, agora eu não viajo mais, pelo menos não em longas viagens.

“Por favor, não fale para eu ir para as montanhas. Por favor, não fale!” Glaudir faria de tudo para não pedirem para viajar rumo à cordilheira.

— Meu nome é Dándus — continuou o issacerez. — e a missão que lhe daremos é extremamente importante. Ela exige viagem.

— Ah, claro! Eu irei para as Grandes Árvores se desejarem, para ver a monveran Húria — disse o ivirez, tentando escapar, quando na verdade pensava: “Vamos lá, Glaudir! Tente fazê-los esquecer das montanhas.”

— Bem, sinto muito, mas não é para as Grandes Árvores que você irá, mas sim para a Cachoeira Ant.

“Ah! Que bom. Meu pai estava errado” pensou ele, com alívio.

— Onde fica essa tal cachoeira?

— Na Cordilheira de Andrus. — Glaudir tossiu de leve, engasgando-se com a própria saliva. — Você vai levar meu irmão, Docus, consigo para ajudá-lo, e ele vai conferir se você vai obedecer. Entretanto, deixamos claro que você tem a opção de querer ir ou não ir.

— Mas por que querem que eu vá?

— Vimos a monveran Lúminar voar para as montanhas, mas não temos certeza de que está lá. Só precisamos que alguém vá para vê-la, se estiver, e avisar-nos que ela voltou para Haldom. Só isso.

“A missão não é muito importante para que eu vá” Glaudir refletiu, porém lembrou-se dos segredos de seu pai e achou que devia ir. Isso foi suficiente para que perguntasse: — Quando é que eu tenho que ir?

— Amanhã ou depois de amanhã se preferir. Você aceita ou não?

Os segredos de Glaucor já começavam a dominá-lo, tirando o medo das subidas e descidas das Montanhas de Andrus. Ele precisava ir. Seu pai escondia muitos enigmas e, ainda mais, para seu próprio filho, o que só poderia ser muito importante e que Glaucor não contaria tão facilmente. Era melhor descobrir de uma vez e ver com os próprios olhos.

— Sim, eu vou.

E foram essas três palavras que mudaram muita coisa da vida de Glaudir, tantas que os leitores só poderão saber nas próximas páginas. Mas se ele dissesse apenas “Não, eu não vou” não haveria história e o ivirez seria tomado como um desconhecido e tampouco seria lembrado.

— Muito bem — disse Dándus, o issacerez. — Estamos gratos pela sua decisão. Amanhã Docus irá à sua casa em Vila Verde. É lá onde você mora, não é?

— É lá. Estarei aguardando o issacerez — disse Glaudir. — Que Lúminar os ilumine.

Os issacerezes desejaram o mesmo.

Glaudir seguiu seu percurso para casa sem pressa nos pés. Poucas nuvens já se mexiam, lentas no céu, todas tímidas e rasgadas. Demorou um pouco para que o ivirez chegasse em seu lar. Lá na frente e atrás da cerca baixa estavam Glaucor, seu pai, e Tick, seu amigo desde a infância. Esse último era da família Rauvos, uma família rica e dona de terras no sul de Havis. Tick era um pouco mais velho que Glaudir e, além de ter amizade com o ivirez, a tinha também com Glaucor. Ele sabia que o velho guardava segredos de sua vida, no entanto, não se importava com isso. O que lhe importava eram as histórias que o outro conhecia, sendo a preferida a de Parigrocks, que abandonara Haldom para ir à Terra dos Gigantes no norte, pois Glaucor sabia algumas coisas que houvera depois que Parigrocks saiu da terra natal. Justamente, era essa a história que Glaucor estava contando.

— E então, Glaudir, a missão é a mesma que eu disse? — perguntou Glaucor, virando-se um pouco na cadeira na qual estava sentado. Tick também estava sentado e olhou para o ivirez.

— Sim. Eu vou à Cordilheira de Andrus — respondeu o filho. — Mais especificamente na Cachoeira Ant.

— Cachoeira Ant? — disse Glaucor, ficando sério. — O que eles querem?

— Bem, disseram que a monveran Lúminar estava por lá, ou está… Querem que eu os avise, se eu vê-la. Não sei direito se eu vou amanhã ou depois de amanhã.

— Você pode ir acompanhado? — perguntou Tick. — Posso ir com você se quiser. A viagem é um pouco longa, mas gostaria de ver a tal cachoeira. Dizem que ela é belíssima, tanto que os alvanes batizaram-na de Ondorionen, “luz de ouro” ou “luz rara”. O nome Ant2 não tem nada a ver com ela.

— Tudo bem. Acho que os issacerezes não vão reclamar e vão deixar — concordou Glaudir. — Vai ser melhor ter um companheiro conhecido, e é a primeira viagem com meu melhor amigo. Você nunca quis viajar comigo.

— Você fazia grandes percursos, por isso eu não ia — disse Tick. — Não gosto nada de dores nas pernas. Mas, voltando ao assunto… Posso arrumar pôneis para diminuir o tempo e o cansaço.

— Então vai ter que achar três. Um issacerez chamado Docus vai também, para me vigiar.

— Não será um grande problema. Amanhã eu trago os pôneis. Ah! E a comida também, junto de algumas armas. Não é muito bom andar em lugares desabitados desarmados.

— Não, não, não, Tick — disse Glaucor, levantando-se com ajuda da bengala. — É muito gentil da sua parte, mas deixe a comida conosco. Eu vou comprá-la. Não precisa comprar uma arma para Glaudir, ele não sabe usá-las, só uma para você. E para esse issacerez, acho que não será preciso, pois ele deve ter uma arma, já que costuma viajar.

— Se é assim que prefere — disse Tick levantando-se também. — , assim será. Vou indo agora. Tenho que avisar minha família. Até logo!

— Até logo, Tick! — despediu-se Glaudir.

— Não, espere! — disse Tick para si mesmo, reparando o mais importante. — Nós vamos amanhã ou depois?

— Eu preferiria amanhã, — respondeu o ivirez. — pois é quando o issacerez vai chegar, mas só se assim meu pai desejar.

— Você já é adulto, Glaudir! — retrucou Glaucor. — Já pode tomar suas próprias decisões sozinho.

— E então? — insistiu Tick.

— Amanhã. Não leve muita coisa — respondeu Glaudir.

— Só o necessário, eu sei. Mais um pouquinho a mais até que pode ser útil.

— Tudo bem. Até amanhã, Tick. Estarei à sua espera.

Tick logo saiu.

Aquele dia passou rápido para Glaucor e Glaudir, este último a perguntar a seu pai sobre sua vida passada, mas o outro, como era de se esperar, não respondia. À tarde, Glaudir arrumou sozinho as suas coisas — necessárias, enquanto seu pai comprava comida em um mercado. Estava no seu quarto, colocando-as em sua mochila, quando viu o espelho Sólut em cima da cama, em meio a alguns lençóis desarrumados. Pegou-o e olhou-o.

— Com você, sinto que minha mãe está comigo — disse ele. — E ela me acompanhará nessa viagem, assim como me acompanhou nas outras, só que agora mais de perto. Vou levá-lo Sólut, para eu vê-la e senti-la.

Colocou-o na mochila e depois esperou o pai chegar, preparando o jantar. Já era noite quando Glaucor chegou. Comprara comida e um cantil novo para o filho, o outro que Glaudir usava estava sujo e velho. Também tinha comprado uma pequena quantidade de arhevajika, bem como um cachimbo de cor verde e detalhado com um monveran branco. Glaudir não gostou muito daquilo.

— Sei que não gosta muito de fumar, — justificou-se Glaucor. — mas a fumaça da arhevajika pressente perigos. Vai ajudá-lo. Se estiver negra e se despedaçar no ar, é sinal de perigo, e um perigo extremo. E fumar pode lhe dar uma sensação alegre também.

A noite foi calma. Ainda era madrugada quando Glaudir acordou, por volta das quatro horas, e a lua cheia ainda repousava no céu. Seu pai falava com alguém, talvez Tick, pois sua voz vibrava sob as luzes da casa já acesas, principalmente as da sala onde todas as velas e lâmpadas clareavam o cômodo. Foi para lá ainda de pijama e viu três pessoas: Glaucor, Tick e um desconhecido — um issacerez como pôde notar pelos cabelos loiros e pela insígnia no peito.

— Olá! Já é hora de irmos, não é? — disse Glaudir para Tick, mas o outro nem dera muita atenção, dominado pelo sono, entretanto ainda de pé.

— Acorde Tick! — disse Glaucor, balançando-o. Depois, dirigiu-se a Glaudir. — Esse é Docus Dándus Harthyus, o issacerez que o acompanhará.

— Súmare está conosco — disse Docus, reverenciando.

— Certamente — respondeu Glaudir. Notou que Docus não usava vermelho como os outros issacerezes, e era bem jovem, por isso perguntou: — Por que não está usando as vestes dos issacerezes?

— Ainda estou no início do treinamento. Não sou oficialmente um issacerez — respondeu Docus. — Acabei de aprender a língua dos monverath, portanto só uso a insígnia. Acompanhei o senhor Tick e vejo que ele irá conosco, embora esteja com muito sono. — Glaudir deu uma leve cotovelada em seu amigo e ele despertou assustado, para dormir novamente.

— Vou trocar minha roupa — murmurou Glaudir. — e pegar minha mochila. Me esperem.

— Além de lavar o rosto, filho — ordenou Glaucor. — Seus olhos ainda estão dorminhocos.

Glaudir fez o que ele disse, mas tomou um banho também, pois sabia que não tomaria muitos na viagem. Eram cinco horas quando apareceu aos outros na sala, vestindo uma roupa escura. Tick estava caído de sono na cadeira e Docus, apenas sentado com as pernas esticadas enfiadas em suas botas grossas. De fato, os issacerezes eram uns dos únicos ivirezes a usarem calçados, inclusive dentro de casa. Glaucor estava em pé com sua bengala na mão e foi em direção ao filho.

— Sei que já lhe dei Sólut, meu filho, meu filho querido, — disse ele. — mas quero que fique também com minha bengala, a minha grande companheira. Ela vai ajudá-lo a subir as montanhas e é bastante sólida, podendo ser usada também como arma. Entregue-me quando voltar.

Glaucor deu-lhe a bengala e o filho a tomou com curiosidade.

— Para que tantos presentes? Já me deu o espelho, o cachimbo, e agora a bengala.

— Simplesmente porque vai precisar. Não faça mais perguntas, está na hora de partir, e você vai entender tudo daqui a pouco tempo.

Docus levantou-se e Glaudir bateu de leve com a bengala na testa de Tick três vezes, fazendo-o acordar logo, logo. Pegaram suas mochilas e as colocaram nas costas — o issacerez também tinha uma — e saíram da casa. Lá fora, após a cerca, três pôneis esbeltos e robustos balançavam as cabeças e as caudas para lá e para cá. Atravessaram o cercado, mas Glaucor permaneceu na pequena porteira, olhando-os.

— Esses são Saltador, o meu, — disse Tick. — Raio, o do issacerez, e, bem, ainda não há nome para o de Glaudir.

Glaudir olhou o último, para achar um nome que combinasse. Ele era um pônei escuro, com crinas curtas e negras, e bem forte. Sua cor era vermelho-escuro, e sua cauda preta. Tentou pensar em um nome que não tivesse nada a ver com aquilo, mas não conseguiu.

— Que tal Sombra? Gostaria de achar um outro nome que não parecesse “escuridão”, mas não encontrei ao olhar para ele. Talvez no caminho eu encontre outra característica e mude o nome.

— Talvez… — murmurou o issacerez Docus. — Mas a sombra também é boa em certos momentos, como quando há muito calor e ficamos à sombra de uma árvore.

— Tem razão. — concordou Glaudir, montando em Sombra. Os outros fizeram o mesmo em seus animais. Glaudir olhou para Glaucor, seu pai, e deu um sorriso.

— Que Lúminar os ilumine nessa pequena estrada — disse Glaucor.

Assim que o vento frio do norte suspirou em seus cabelos, os três começaram a cavalgar com as patadas dos pôneis nos ouvidos. Tick não conseguiu manter os olhos abertos e o sono o controlou, fazendo-o tombar para o pescoço de Saltador e dormir em seu lombo. Eles seguiam ao Lago Morgoly por uma estrada limpa, onde encontrariam um rio que os levaria à Cachoeira Ant.

A escuridão da madrugada já sumia, pois o brilho do sol surgia no leste, e a lua cheia enfraquecia-se como um fantasma, quando ficaram longe da visão de Glaucor, passando a serem pequeninos. O pai suspirou ao nascer do sol:

— Mas a estrada vai crescer e se dividir, e poderá parecer sem fim, onde as pedras e espinhos nascerão mais e mais com o tempo.

Fechou a porta e foi para dentro da casa, para descansar e dormir.

1 Acazi-atemhôpahro

2 Ant é o monveran Ant, O Carniceiro, que comia os restos de mortos frequentemente.

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SUMÁRIO

PRÓXIMO CAPÍTULO > O VELHO DE UMILZEND

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Paulo Moreira

Brazilian pharmacist in loved with History, Fantasy and Ecofiction. Author of The Blood of the Goddess. I write about nature in poems and fantasy stories.