Pôster do filme It.
It. Stephen King.

O Ciclo do Medo

Pensando a relação da Fé com o Terror

Paulo Moreira
6 min readMay 12, 2023

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Escute o áudio aqui.

Não há medo sem crença e não há crença sem medo

Um fantasma aparece na igreja diante do crente, que acredita que fantasmas não conseguiriam pisar em solo sagrado.

Uma criança acredita que seu irmão mais velho sempre conseguirá salvá-lo dos valentões, mas o irmão mais velho acaba perdendo para os valentões, gerando medo no mais novo.

Acredita-se que prata mata lobisomens, mas não funcionará na cena, gerando medo em quem tentou usar a prata.

Ele acreditou que enterrar alguém no cemitério de animais trará o morto de volta à vida com as mesmas características de quando estava viva, mas a pessoa volta muito diferente, gerando medo.

A crença leva ao conforto, à sensação de entendimento, de segurança. Romper uma crença leva ao desconforto, ao medo (numa perspectiva mais negativa) ou a revolta (numa perspectiva mais positiva).

Não há crença sem medo, pois o medo leva à crença

Se monstros amedrontam e prendem pessoas no shopping, de repente acredita-se que os monstros vieram para puni-los pelos seus pecados, assim sacrificar pecadores os manterá a salvo. Essa crença também pode trazer medo ao ser rompida mais tarde, provando-se falsa.

O nevoeiro.
O Nevoeiro. Stephen King.

O medo da fome faz os aldeões acreditarem que a perda da colheita foi por causa de alguma bruxa que deve ser sacrificada.

O medo de ficar sozinho com o monstro faz acreditar que a equipe unida derrotará o monstro. Essa crença pode se provar falsa numa próxima cena se deseja-se criar mais medo.

O medo de perder a filha faz a mãe acreditar que estando sempre presente evitará que a filha se perca para o mundo lá fora.

Para se manter são diante do inesperado ou bizarro, acredita-se em algo também bizarro. Essa nova crença diz mais sobre os personagens que as criaram do que sobre o universo de fato.

É uma Estrutura cíclica:

O medo cria uma crença. A crença se prova falsa na hora H, criando medo. O novo medo cria uma nova crença a quem sobreviveu.

Como quebrar o ciclo do medo?

Essa é a função do protagonista, que segue o caminho misto de medo e revolta.

Duas sugestões, que podem ser usadas numa mesma história:

1. Usar a razão para descobrir a verdade

O protagonista não é o alvo principal do monstro, que foca em outra coisa que o protagonista deseja salvar, geralmente uma pessoa. Isso dá tempo para pesquisa, embora seja interessante que seja uma corrida contra o tempo.

O Chamado, filme.
Quem lembra da corrida contra os sete dias de O Chamado?

Ele vai atrás da história do fantasma. Investiga as causas para a perda da colheita. Os resultados o aproximam da verdade. Ele sabe como derrotar o monstro, de quem o fantasma está se vingando, se há realmente um culpado pela seca.

A razão leva à crença fundamentada, e ele salva a vítima ou a si mesmo.

Mas se você pretende continuar causando mais medo, a razão também pode levar a uma crença falsa. Nesse caso, o protagonista pode perder a razão na hora H, ou perceber que deixou passar algo. A vítima sofre de alguma maneira com o erro do protagonista.

Se perdeu a razão, ele pode questionar o mundo e os métodos científicos, talvez rejeitá-los. Como a crença se provou falsa, ele é entregue ao medo. O protagonista abandona o perigo. Desiste de lutar. O protagonista pode até sobreviver, mas sua sobrevivência tem gosto de derrota.

Se deixou passar algo, ele vai sobreviver ao perigo e voltar às pesquisas, e enfrentar o perigo mais uma vez. Se a vítima morreu na etapa anterior, ele deseja vingança ou proteger uma outra vítima. Se a vítima foi capturada, ele deseja resgatá-la. Todos esses desejos afetam o psicológico do protagonista durante as pesquisas.

2. Usar a experiência para descobrir a verdade

O protagonista vê quem é perseguido pelo fantasma, onde o monstro não consegue ir. Ele mesmo é atacado várias vezes e consegue sobreviver por algum motivo. Nesse caso, o protagonista é o alvo principal do perigo ou está na mesma situação do alvo principal.

Suas experiências acabam lhe dando coragem e ele entende o perigo de fato, descobre a verdade, conseguindo derrotá-lo com o que aprendeu. Lembrando que o protagonista sempre pode deixar passar algo.

Silent hill, filme.
É com as experiências de Rose no filme Silent Hill que ela descobre como salvar a filha.

Se deixou passar algo, ele vai perceber na hora H e vencer o perigo na mesma cena. Isso porque um protagonista sempre escapando faz o leitor questionar se o monstro deseja realmente matar o protagonista e perde-se a sensação de perigo iminente.

Se suas experiências levaram a um conhecimento errado, o conhecimento se tratava na verdade de uma crença falsa, e gerará medo ao ser rompida. Mesmo se o protagonista continuar lutando (irracionalmente), tudo será em vão. Como ele já passou por muitas experiências com o perigo, não há espaço para uma nova escapatória. Ele perde.

Sugestões de crenças a serem rompidas

A crença nas leis da realidade (Horror Cósmico)

Se você acredita no mundo ao seu redor, rompa essa crença para gerar medo. Como um personagem reagiria diante de geometrias e arquiteturas bizarras, criaturas fisicamente absurdas, gravidade inútil, ou a própria ciência inútil? Como o protagonista procuraria explicações para a quebra de suas crenças? Há de fato explicações?

A crença nas leis da sociedade

As leis da sociedade realmente conseguem proteger quem precisa? Se uma sociedade se colapsar, como os personagens irão reagir? Como funcionarão o cooperativismo, as relações entre gêneros e poderes, quais novas leis serão estabelecidas e por quem? Seria a violência a nova crença a que todos recorreriam?

The Walking Dead série.
The Walking Dead não é só sobre zumbis.

A crença na inocência

Crianças, mulheres aparentemente indefesas, idosos simpáticos, áreas rurais e a própria natureza em sua forma bela poderiam ser capazes de gerarem as piores atrocidades? Crimes que põem em cheque a pureza da humanidade.

A crença no corpo

O que você acredita que é capaz de fazer com o seu corpo? E se você perder as pernas em um acidente de trânsito? E se seu próprio corpo se modificar de forma monstruosa, se for violado, se você não tiver controle sobre ele, como reagirá?

Filme A Mosca.
Filme A Mosca.

A crença na mente

A mente do personagem é mesmo incorruptível? O que ele entende é realmente verdadeiro? O que ele está vendo está realmente acontecendo? Sua mente consegue feri-lo fisicamente?

A crença na ciência

Tratamentos para doenças incuráveis, tecnologias que vão revolucionar o mundo, projetos espaciais ambiciosos. Confiamos muito na ciência pelos seus métodos rigorosos. Como romper essa confiança para gerar medo?

A crença na religião

Exorcismos nem sempre precisam dar certo. Objetos sacros nem sempre precisam repelir criaturas demoníacas. E os devotos nem sempre são tão bonzinhos como se demonstram.

A crença na família

Um pouco parecido com a sugestão de romper as leis da sociedade, mas aqui com as relações familiares. Seu personagem pode acreditar em um padrão de família perfeito, e se você romper esse padrão? Relações abusivas, lares violentos, mães, pais e filhos perigosos. A própria tentativa de recuperar um padrão desejado de família pode ser a fonte para o terror.

Cemitério de animais, filme.
É melhor deixar o gatinho morto em Cemitério de Animais.

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Paulo Moreira

Brazilian pharmacist in loved with History, Fantasy and Ecofiction. Author of The Blood of the Goddess. I write about nature in poems and fantasy stories.