Gaia: Coopere e (sobre)viva

Falando sobre o lado catastrófico da natureza

Paulo Moreira
8 min readJun 24, 2022

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Na mitologia grega, Gaia é considerada uma entidade primordial com uma potencialidade criadora enorme, e por isso também pode ser chamada de Mãe-Terra. Sozinha, gerou Urano, o Céu, com quem casou-se e teve filhos monstruosos, dentre eles Cronos.

Mas Urano era cruel e maltratava ela e seus filhos, prendendo-os no ventre da Terra. Até que Gaia se rebela e ajuda Cronos a matar o pai. Cria uma foice e entrega-a a Cronos, que castra o pai.

Gaia.
Gaia, by Anselm Feuerbach (1875).

Mais tarde, a história se repete. Temendo que um dos seus filhos o mate, Cronos os devora. Só Zeus escapa ajudado por Gaia, que o esconde em uma caverna. E mais tarde (de novo) destrona o pai com ajuda dos monstruosos hecatônquiros e titãs, filhos de Gaia.

E como no meme do Pica-Pau “e lá vamos nós”, Zeus trai Gaia, prendendo os filhos dela no Tártaro. Gaia se rebela, envia seus filhos andróginos, seres com quatro pernas e quatro braços, para escalarem o Monte Olimpo. Zeus os vence. Gaia envia seus gigantes, mas novamente perde a batalha. E por fim, envia Tufão, seu filho mais terrível.

Todos os deuses se unem contra o cataclismo em uma longa e sangrenta batalha. Derrotam-no, e enfim Gaia cede. Promete que nunca mais voltaria a tramar contra Zeus e é tratada como uma titã do Olimpo. A paz se estabelece.

Em outras palavras, Gaia parece sempre estar em prol da criação, mas os deuses, temerosos de seu enorme poder, tentam reprimi-la. O conflito acaba ganhando proporções catastróficas. Mas a cooperação abre espaço para a vida.

A Terra e suas simbioses

Fora da mitologia, a mesma relação conflituosa é vista no filme Final Fantasy: The spirits within, animação de ficção científica dirigida por Hironobu Sakaguchi, o criador da franquia Final Fantasy.

Pôster de Final Fantasy.
Pŝter de Final Fantasy.

O filme se passa em 2065, quando a humanidade foi quase dizimada pelos Espectros, uma forma de vida alienígena que consome o espírito dos seres vivos, matando-os instantaneamente. Para derrotar os Espectros, os cientistas pretendem usar o Canhão Zeus (em referência ao mito grego), mesmo sabendo que isso acabará com a única esperança de vida na Terra, destruir o seu espírito: Gaia.

Sim, mesmo sabendo. Porque já conhecem a Teoria de Gaia, mas têm medo. No filme, a teoria é proposta pelos cientistas Dr. Sid e Dra. Aki Ross, segundo os quais Gaia é o espírito da Terra responsável pela vida no planeta, e por isso os Espectros a procuram nos espíritos humanos.

No mundo real, a teoria foi proposta pelo químico James Lovelock e pela bióloga Lynn Margulis na década de 70. O James dizia que o planeta seria um superorganismo no qual todas as reações químicas, físicas e biológicas estariam interligadas. A Terra seria um corpo vivo. Não teria sido feita como a conhecemos para ser habitada. Ela se tornou o que é através do processo de habitação, de como os elementos se relacionaram.

Foto em preto e branco de Lynn Margulis e James Lovelock sentados numa biblioteca.
Lynn Margulis e James Lovelock.

A Lynn acrescentou uma base sólida à Teoria de Gaia ao comprovar que os seres vivos “cooperam para evoluírem” e não só “competem para evoluir” como pregavam os preceitos neodarwinistas.

Em sua Teoria da Endossimbiose, ela explicou a origem da mitocôndria, organela responsável pela respiração celular e reações metabólicas. A mitocôndria seria então descendente de uma bactéria antiga que utilizava oxigênio como “energia”. Foi encapsulada por uma célula há aproximadamente 1,6 bilhões de anos, mas não digerida por fornecer vantagem a essa célula. O organismo resultante é o ancestral de todas as células eucarióticas, ou seja, das células dos fungos, das plantas, dos animais, das nossas células.

Unindo Lovelock com Margulis, a Terra não seria então um planeta inanimado, que por acaso teve vida. A Terra é a própria vida, mantida viva pela cooperação. Romper a cooperação seria catastrófico, como Gaia enfrentando os deuses. É o que os cientistas Aki Ross e Sid precisam evitar em Final Fantasy, a sua última fantasia. E o que já vimos no mito de Erisictão.

Quando não cooperamos

Rei da Tessália, Erisictão era violento, não temia os deuses. Contra todos os conselhos, destrói o bosque sagrado de Deméter, deusa da agricultura. Corta um carvalho, matando a ninfa que morava ali dentro.

Pelos pedidos das divindades do bosque, que imploram por ajuda, mas também por vingança por ter a desrespeitado, Deméter acomete Erisictão com uma fome insaciável.

O rei devora todas as comidas do palácio, perde toda a sua fortuna, vira mendigo, mas nunca consegue se satisfazer. Até que, enlouquecido, come seu próprio corpo. Devora-se. Morre.

Preciso destacar que Erisictão não é o único a sofrer por ter confrontado a natureza. Durante sua tortura, ele vende a própria filha, Mnestra, como escrava. O amante dela, deus Poseidon, lhe dá o dom de mudar de forma, e assim ela consegue fugir dos homens que a compraram. No entanto, quando o pai descobre a habilidade da filha, passa a vendê-la várias e várias vezes para conseguir comida.

Gravura.
Deméter ordena que a Fome ataque Erisictão, por Elisha Whittelsey Collection.

Mas, seria a catástrofe uma forma de restabelecer a cooperação?

Esse é um tema já bastante abordado em Hollywood. Filmes como O Inferno de Dante, Armagedom, No Olho do Furacão, O Dia Depois de Amanhã e o não mais temido 2012 nos mostram o lado terrível da natureza, e também como as pessoas precisam cooperar uns com os outros para sobreviverem. Como Noé unindo sua família para sobreviver ao dilúvio. Ou como os japoneses com o seu “bousain no hi”, o dia de prevenção de acidentes, quando famílias e escolas refazem treinamentos de segurança para aprenderem a se comportar durante os terremotos (ou quem sabe durante o ataque dos anjos de Evangelion).

Nem todos aprendem a lição, é claro. Nem todo mundo quer cooperar. Os westerosi de A Guerra dos Tronos ficam tão preocupados com um trono de ferro e em matar selvagens que não conseguem sentar numa mesa sem fazer alguém sangrar, mesmo sabendo do estrago que o Longo Inverno pode fazer. Em quem será que o tio Martin se inspirou?

Quem disse que cooperar é fácil? É preciso que alguém ceda, se sacrifique, se não as duas partes. Gaia precisou conter o seu poder para ter seu lugar no panteão grego. Em Final Fantasy, é preciso utilizar o próprio espírito como catalisador da reação para restaurar o espírito da Terra. E eu tenho certeza que você já viu alguém se sacrificando pelos outros em algum filme de catástrofes naturais.

E o que ganhamos com a cooperação? A Lenda do Cavaleiro Verde pode nos responder.

Sobre viver

Sir Gawain e o Cavaleiro Verde (ou Dom Galvão e o Cavaleiro Verde) é uma lenda que narra a aventura de Sir Gawain, cavaleiro do rei Arthur. Durante uma reunião com os outros cavaleiros, aparece o misterioso Cavaleiro Verde com um machado, um homem todo pintado de verde montado em um cavalo de pelos também verdes. O estranho lança o desafio para os presentes: “Quem o ferir com seu próprio machado, será ferido um ano depois da mesma forma pelo próprio Cavaleiro Verde”. Quem aceitar o desafio, receberá o machado como presente.

Sir Gawain aceita, mas de forma perspicaz, corta a cabeça do Cavaleiro Verde. Assim o cavaleiro morre, não poderá se vingar, e Sir Gawain terá o machado para si.

Gravura.
Sir Gawain e o Cavaleiro Verde. Artista desconhecido.

Mas não é o que acontece. O Cavaleiro Verde volta à vida, pega sua cabeça decepada e promete que voltará para retribuir o golpe um anos depois como prometido. Acontecerá na desconhecida Capela Verde. Sir Gawain terá que estar lá, se não provará que é um covarde e que não merece ser chamado de cavaleiro de Arthur. E como um bom cavaleiro, Sir Gawain coopera.

Na sua aventura por encontrar a capela, Sir Gawain se hospeda com Bertilak, o senhor de um castelo, que lhe promete dar tudo que o cavaleiro conseguir caçar em sua terra, desde que dê ao senhor tudo que receber dentro do castelo. Mais uma vez, Sir Gawain coopera, sendo presenteado com cervos e javalis.

No entanto, quando o cavaleiro recebe uma cinta verde da dama do castelo, ele a esconde de Bertilak. Isso porque, nas palavras da dama, a cinta é mágica e o protegerá de todo dano. A cinta o salvaria da vingança do Cavaleiro Verde. Dessa vez, Sir Gawain não coopera, mas sem saber do segredo, Bertilak lhe presenteia com uma raposa.

Enfim chega o dia de sua morte. Sir Gawain vai à Capela, onde o Cavaleiro Verde o espera com o machado. Abaixa a cabeça para receber o golpe, mas na primeira vez desvia amedrontado. O Cavaleiro Verde zomba dele.

Envergonhado, Sir Gwain abaixa a cabeça novamente, mas agora é a vez do Cavaleiro Verde errar. Explica que só estava se preparando. Irritado, Sir Gawain grita para que ele pare de enrolar e corte sua cabeça de uma vez por todas. O Cavaleiro Verde finalmente abaixa o machado, mas só abre um pequeno corte no pescoço de Sir Gawain.

O desafio acaba.

Sir Gawain sobrevive, mas com um pequeno ferimento no pescoço.

O Cavaleiro Verde explica que estava apenas testando a coragem e a honra dos cavaleiros do rei Arthur. A cicatriz foi feita porque Sir Gawain havia lhe escondido a cinta mágica, provando sua desonra.

Você deve ter percebido a relação do Cavaleiro Verde com a natureza. Sua cor é verde, mesma cor das folhas, cor da fertilidade e do renascimento. Ele, na figura de Bertilak, permite que Gawain fique com os animais que caça em sua terra. E atacá-lo seria atacar a si mesmo, como visto também no mito de Erisictão.

Quando Sir Gawain coopera com Bertilak em seu castelo, recebe comida. Mas quando não coopera, escondendo a cinta, é ferido. Se não tivesse cooperado em nenhum momento, certamente teria perdido toda cabeça.

Embora falhe em sua aventura, a história de Sir Gawain nos mostra que o resultado de cooperar com a natureza é a vida.

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Paulo Moreira

Brazilian pharmacist in loved with History, Fantasy and Ecofiction. Author of The Blood of the Goddess. I write about nature in poems and fantasy stories.