Águas de Verão

Quando tudo se encontra e se une

Paulo Moreira
15 min readMar 12, 2023
Água-viva em um céu noturno.
Photo by Karan Karnik on Unsplash

É incrível como as águas quentes de Celístia atraem tanta coisa. Tudo gira em torno delas. Primeiro, as belíssimas águas-vivas luminosas, depois, os corpos suados que lotam os catamarãs ao som estrondoso de músicas obscenas, e por fim as incontáveis latinhas de cerveja, bitucas de cigarro, tampinhas, canudos, copos, sacolas e chinelos. Todo ano. Um atrai o outro. A água quente atrai todos. Faz todos boiarem ao seu redor, se encontrarem em um só ponto, onde se unem.

Dei graças a Deus quando o meu catamarã parou na baía e eu finalmente pude descer — ou fui empurrado. Pus os sapatos lustrosos na água, me sujei de areia. Depois os enfiei na maleta, sem me importar com todos os documentos ali dentro. Afrouxei a gravata e pendurei o paletó no ombro. Desabotoei a camisa. Respirei o ar de Celístia, cheirando o sal finalmente — ainda salgado graças a Deus, e andei descalço pela praia.

O catamarã foi embora, pra longe da praia.

Sorri.

Eu esperava que houvesse pelo menos algum vendedor ambulante na praia, mas não havia ninguém. Não tinha nenhuma barraca na areia, nenhum guarda-sol, quase nenhum lixo. Só um cachorrinho caramelo farejando um coco largado na calçada.

Culpa minha. Fiz com que a praia fosse fechada em pleno verão, mais especificamente na semana de lua cheia, que, sendo ainda mais cruel, coincide com a ascensão das águas-vivas, um nome bonito para dizer que as águas-vivas estão namorando. É que o verão traz águas quentes para o mar de Celístia, a lua cheia traz a maré, e as águas-vivas se reproduzem, simples assim. Todo mundo vem ver isso, com seus plásticos, sua arruaça e suas benditas luzes nauseantes de tão brilhantes. Acabei estragando a diversão deles.

Fechei a praia. Orgulho do pai.

Mas não consegui acabar com o festival, até para mim seria exagero. A cidade não tinha prédios, continuava pacata, mas percebi que todas as barracas de antes tinham migrado para o outro lado da avenida, após a calçada.

As lojas de brinquedos estavam lotadas de turistas. Deixei a praia e passei por uma delas. Vi pela vitrine que vendia balões brancos, como os que papai usava tempos atrás para enfeitiçar as águas-vivas, mas esses não deviam ter hélio, pois ficavam rastejando pelo chão da loja.

Tinha uma menina de cabelos cacheados chutando os balões, cinco anos eu acho, e uma mulher de cabelos idênticos conversando na fila do balcão, com certeza sua mãe. Eu só podia vê-la de costas. Não sei por que, mas as duas me atraíram.

Na primeira vez que Mari participou da ascensão, ela devia ter a mesma idade da criança da loja. Lucca tinha só sete meses, estava dentro da barriga de mamãe, mamãe que só ficou sentada na cadeira de praia de olho no sol poente com a mão massageando o ventre, igual a toda grávida clichê.

Meu pai foi um dos primeiros celistianos a se importar com as águas-vivas, as suas amadas Aeqora luciferia, como fazia questão de destacar. Enquanto as pessoas usavam redes para capturá-las na noite de lua cheia, papai usava balões de hélio. Eu e Mari ficávamos caçando pedrinhas redondas e lisas no cascalho da praia. Não era obrigatório serem redondas, mas a gente queria assim por ser mais desafiante.

— Não vão muito longe — mamãe disse, como sempre. A gente não se atrevia. Naquele tempo, Celístia era lugar nenhum, não vinha tanta gente para a ascensão, ainda assim a cidadezinha reciclava histórias de moradores briguentos, de crianças sequestradas pelo velho do saco, de maracajás brabos que saíam da mata e gostavam de comer orelhas.

E o Seu Barton estava na praia também, ao lado do seu barco de pesca, com a…

— Lenisa — me apontou a pequena Mari, com um grito de surpresa.

Lenisa. Era a filha morena do Seu Barton, de olhos verde-claro e cabelos cacheados, com cheiro de pipoca e manteiga. Eu lembro do cheiro dela, nunca esqueci. Ela ajudava a mãe onça na barraquinha de pipoca da escola, e agora ajudava o papai leão a desatar os nós da rede de pesca.

Lenisa.

Disse oi. Ela disse oi. Acho que piscou também. Seu Barton cruzou os braços peludos no peito e perguntou se não tinha ninguém melhor para eu importunar.

Papai chegou na hora. Entrou na praia com a picape — que não era dele, mas de tia Miranda — e estacionou na frente de mamãe, barrando a luz do sol. Gritou para mim, e eu fui ajudá-lo a tirar a canoa. Pegamos o cilindro de hélio, empurramos a canoa no mar e mamãe jogou o saquinho de balões para a gente, cansada demais para se levantar da cadeira. Navegamos em direção ao sol, papai na frente, Mari no meio, e eu atrás. Mamãe permaneceu na praia:

— Bom enjoo pra vocês!

A criança da loja pisou num dos balões. O estalo tirou meu devaneio e assustou a mãe.

— Menina, fique quieta um segundo!

A criança gargalhou e correu para trás do balcão.

Eu voltei a andar pela avenida, os pés descalços se queimando no asfalto. Comprei chinelos numa barraca da esquina — com o dobro do preço normal por causa do terno que eu vestia, e segui ao norte, onde ficava a casa de Mari. Já há táxis em Celístia, embora as pessoas se locomovam mais de moto, mas não quis pegar nenhum transporte. Aquela cidade, crescida mas ainda pequena, era a minha cidade, a minha Celístia das águas-vivas luminosas. Onde quer que eu fosse, eu chegaria no mesmo lugar.

O norte também era a direção dos turistas. No norte ficava a cidade vizinha de Espinheira e sua Praia do Barranco, e lá a falésia com um farol. Com o novo decreto, era onde todo mundo ia ver o espetáculo das águas-vivas a partir de diante. Era a melhor vista possível, menos para papai que preferia vê-las de baixo, em nossa canoa, participar do festival como o casamenteiro das águas-vivas. E também porque não ia muito com a cara dos turistas.

Na primeira ascensão que Mari participou, apareceram três casais de turistas. Já era noite.

— Então você vai pedir a filhote de onça em casamento? — me perguntou papai, enchendo um balão com hélio. Mari amarrava dois deles na amurada da canoa.

— Não! Vou começar o ensino médio ano que vem, papai. É só namoro. E só se a água-viva me mostrar.

— E vocês não já namoram?

— Não! Eu só… converso com ela. Quem te contou essas coisas?

— A Mari. Bom, se é só namoro…

— Não vai atrapalhar os estudos!

— Relaxe, não é a minha mão que você está pedindo, e nem da Lenisa ainda. Até que pode ser bom pra ela. Quem sabe ela não volta a estudar. Só que os pais…

Foi quando os casais apareceram em um barco a motor. O barulho levantou papai na canoa.

— Não podem usar motor nessas águas! — ele gritou, agitando os braços.

Uma música alta tocava no barco, que para piorar estava com todas as luzes acesas. Os casais dançavam, bêbados. Papai ficou furioso. Arremessou uma pedra que havíamos tirado da praia e acertou em cheio o rosto de um rapaz de barba. Acendeu a lanterna e ofuscou o rosto de todo mundo, até do guia.

— Não podem usar motor! Não podem fazer barulho! Não podem trazer muita luz!

O rapaz atingido nem notou o sangue na testa de tão bêbado que estava. Aparentemente só o guia se mantinha sóbrio, e graças a Deus sabia da fama de papai.

— Adrian! Precisa ser tão antipático? — disse o guia — Eles queriam vir. Trouxeram bebida escondido. Não é minha culpa.

— Adrian, quem é Adrian? — balbuciou uma mulher gorda que rebolava no barco.

— O cara dos umbuzeiros — respondeu o guia. Papai tinha salvado os umbuzeiros da região rural de Celístia que tinham sido atacados por um tipo estranho de fungo. Desde então, todo mundo o chamava de “o cara dos umbuzeiros”. — Vamos ficar quietos, Adrian. Dou a minha palavra.

— As luzes! Olhe para a cidade. Está tudo apagado. Por que não seguem o exemplo também? — retrucou papai.

— Certo, certo! Vamos apagar.

— Desliguem o som. Era bom que fossem embora. O Seu Barton trouxe uma espingarda e não tem a mesma paciência que a minha.

Seu Barton não tinha espingarda, e muito menos se importaria tanto com as águas-vivas, mas aquilo foi o suficiente para assustar o guia.

— Certo, certo! Vamos nos afastar.

E cumpriu o prometido.

Papai… Quem diria que eu ficaria tão parecido com ele.

O pé de algodão no terreiro de Mari estava com as folhas murchando, sinal de que ia chover em algum dia da semana. Quem sabe a chuva não afastasse ainda mais os turistas? A camisa amarela que papai tanto gostava balançava no varal entre sutiãs e calcinhas. Suas botas, largadas no batente da porta, sujavam tudo de areia. Não vi a moto de Lucca em nenhum canto.

— Inventou de lavar a camisa de papai logo hoje? — eu disse, ao entrar. A casa cheirava a lavanda; Mari passava o rodo no piso molhado.

— Nem entre de chinelo, doutor!

Eu sorri e deixei os chinelos na entrada.

— Já tem almoço?

— Papai foi comprar. Estou ocupada, não tá vendo?

— E café?

— Tem um restinho na garrafa, mas não deve estar quente.

Fui para a cozinha, onde peguei um copo de vidro no armário e enchi de café. Estava mesmo frio, e aguado. Não tomei.

— Papai chegou podre hoje de madrugada — Mari dizia, enxugando o piso — Passou a noite de olho num urutau-praiano e voltou com a sola cheia de merda de burro. Botou a camisa sem nem tomar banho, imagina? Achava que já era hora de ir ver as Aeqora. Estava ariado, o coitado!

— E Lucca?

— Vem não. A fábrica não liberou ninguém esse ano. A gente ia preparar um almoço pra ele, mas você sabe como não sou boa disso. Fiquei com pena de papai. Mas pelo menos você veio. E o que foi aquilo da praia? Menino, finalmente. Mas não acho que papai está cem por cento satisfeito. Orgulhoso, sim, mas todo satisfeito, não.

Notei uma garrafa de vidro pendurada no telhado, bem acima da mesa da cozinha, cheia de pedras flutuantes e azuladas. Eram pedaços-de-lua, pedrinhas que brilhavam no escuro, criadas pelas águas-vivas de Celístia durante a ascensão. Não deviam ser as mesmas que Mari conseguira naquela noite, até porque tínhamos usado uma garrafa pet.

O barco de pesca do Seu Barton, bem maior que nossa canoa, ficou quase ao nosso lado. Depois de Lenisa ajudar o pai a jogar a rede no mar, ela colocou uma garrafa de vidro transparente nos olhos e ficou observando o céu, talvez para ver como o brilho das estrelas mudavam com o material, pois trocou a garrafa transparente por uma verde em seguida.

Ela e o pai só deixavam acesos um lampião. Tudo ao redor estava escuro, pouco se via dos outros barcos mais atrás, muito menos na costa. Nós, em nossa singela canoa, só tínhamos a lanterna, que meu pai ainda não permitira acender. Já tínhamos espalhado as pedrinhas recolhidas na praia pela canoa, os balões de hélio estavam pendurados, a lua redonda e amarela se elevava sobre as águas quentes. Mari aguardava com as pernas impacientes e a garrafa PET na mão.

Mas a primeira água-viva a ascender não foi perto da canoa, nem do barco de Seu Barton. Apareceu no meio do nada, subindo ao céu como uma pipa branco-luminosa em movimentos circulares — não, numa espiral, como papai tinha descoberto. De tão longe que estava, a vimos do mesmo tamanho de uma água-viva comum, mas sabíamos que era bem maior. Papai se gabava de ter visto uma cujos tentáculos alcançavam os três metros, mas nós mesmo nunca tínhamos visto alguma tão comprida.

Outra água-viva seguiu a primeira. Surgiu de um outro lugar do mar, mas repetiu os movimentos em espiral, sempre se aproximando da anterior.

Papai chegou às onze e meia com duas pizzas de carne seca e uma garrafa grande de Coca-Cola. Me abraçou forte e segurou minha nuca, me olhando com um sorriso de orelha a orelha:

— Você conseguiu rapaz. Conseguiu mesmo!

— Eu disse que vinha…

— Isso não. Não estou falando disso. Estou falando da praia. Agora as luciferia vão poder se acasalar em paz. Não acho que era pra tanto, podia ter deixado alguns pescadores, o Seu Barton está puto, ele precisa vender as pedras, vai ter gente indo escondido, eu mesmo quero ir, é mais bonito ver de lá…

— Pelo menos vão de luz apagada.

— É. Fazer o que, né? — ele me soltou para abrir a garrafa de Coca-Cola enquanto Mari se sentava na mesa. Percebi as duas cadeiras vazias. Papai também, e seus olhos se encheram de água. — O Lucca, ele… ele não vem.

— Ele não conseguiu vir. Mari já me contou.

Almoçamos bem. Papai não parava de falar do urutau-praiano e de como podia ir ver a ascensão a barco — estaria tão escuro que ninguém veria, afinal — , o sorriso sempre no rosto, e os olhos sempre aguados.

Só à tardezinha que saímos para o farol, a pé mesmo, pois Espinheira não ficava tão longe. Muita gente também ia, de branco como nós. Um cara de moto ofereceu carona a Mari, que recusou indelicadamente a proposta, e passamos a seguir o caminho escutando os mil motivos para ela não querer um homem àquela altura do campeonato. Papai acabou esquecendo de Lucca.

Os postes de Celístia e Espinheira não se acendiam nas noites de ascensão, então assim que a noite caiu, acendemos nossas lanternas para que nenhum turista distraído nos atropelasse. Muita gente fazia o mesmo. Crianças levavam balões brancos — esses sim com hélio — , e pedaços-de-lua, mas quando a lua cheia resplandeceu, todos os olhares se voltaram a ela, ansiosos. A ascensão logo começaria.

Chegamos ao farol, enfeitado com os balões brancos. O topo da falésia estava cheio de gente sentada em cadeiras de ferro, e uma musiquinha, bem suave graças a Deus, soava ao fundo. Mais atrás, carros e motos haviam deixado os faróis acesos para iluminar o caminho de quem estivesse chegando. Vendedores atraíam as crianças com algodão-doce, pipoca e piões luminosos.

Mari me deixou sozinho com papai:

— Não demoro.

Foi a deixa para papai me puxar entre o pessoal.

— Vamos para a borda. Vai ser mais fácil de ver. Se bem que de baixo é tudo mais bonito, não é?

Eu o segui, percebendo o quanto as sombras ao redor haviam envelhecido. Não pareciam as mesmas pessoas. Carlo, que só usava bermuda, agora vestia calças; Clemência, que não fazia amigos, ria à toa dançando a estranha dança do momento; Betão, que amava andar de moto, agora andava empurrado em sua cadeira de rodas.

As pessoas mudaram, mas eu ainda podia reconhecê-los, não pelo olhar, mas por estarem ali, no verão, todos reunidos para ver o fantástico acasalamento das águas-vivas.

Elas não precisavam se acasalar, elas conseguiam se reproduzir sozinhas e em qualquer época do ano, mas toda vez que as águas de Celístia se esquentavam, elas saíam de seus refúgios sombrios no fundo do mar e flutuavam no céu, atraídas pela luz da lua cheia, para reproduzirem apenas com um parceiro, o casal aspergindo gametas na espiral luminosa.

Com tanta energia gasta para flutuarem e se acasalar, morriam logo em seguida, secando-se e dissolvendo-se no céu. E então, quase à meia noite, as gametas fecundadas brilhavam, tão forte que era possível vê-las caindo, devagar, leves como flocos de neve. Um espetáculo. Um evento único.

Meu pai atraía as águas-vivas iluminando os balões brancos com a lanterna, mas só quando alguma estava por perto, em outras palavras, quando as pedrinhas na canoa começavam a flutuar. Mari foi a primeira a perceber isso naquela noite, dando gritinhos de ansiedade.

Papai clareou os balões. A água-viva emergiu, os tentáculos unidos como se fossem uma cauda, uma longa cauda de luz. Papai então desamarrou um dos balões, sem nunca tirar o facho da lanterna, e empurrou-o para perto de mim. Segurei o fio e a água-viva mudou a direção, vindo agora para mim, flutuando sobre a canoa.

— Cuidado com os tentáculos, Mari! — disse papai, enquanto a menina se abaixava para pegar as pedrinhas voadoras. Com a proximidade das águas-vivas, elas já começavam a brilhar. — Mateo, só toque sua palma na umbrela. Isso. É seguro. Use o balão pra afastá-la. Desse jeito mesmo. Agora olhe bem no meio da umbrela. Consegue ver?

O que eu vi naquela cabeça gelatinosa da água-viva com certeza era Lenisa, de cabelos cacheados, pele morena, olhos verde-claros. Só não senti seu cheiro de pipoca amanteigada, mas pude imaginá-lo.

— Me dê aqui — pediu papai. Apagou a lanterna e desatou a boca do balão, tirando o hélio.

Sem luz branca, a água-viva ficou livre e seguiu a seu destino com os movimentos em espiral. Mari coletou todas as pedrinhas cintilantes, agora pedaços-de-lua, na garrafa pet.

— E aí? — insistiu papai.

— Acho que é a Lenisa. Mais ou menos. Você viu a mamãe na sua época?

— Vi, sim. Bom, mais ou menos. Vai contar pra menina?

Dei uma olhada para o barco do Seu Barton antes de responder. Duas águas-vivas tinham sido pegas na rede deles, mas após serem libertas, uma delas deslizou para o fundo do mar, sequer voou. Esse era o problema capturá-las antes de já estarem flutuando.

Mas a outra planou acima das pedrinhas de Lenisa normalmente, acendendo-as. A menina também tocou sua umbrela, e depois sorriu para mim. Quando a sua água-viva enfim se libertou, acho que a sua água-viva descreveu a mesma espiral da minha.

— Amanhã. Sem falta — respondi.

Papai sentou na borda da falésia, os pés flutuando no vazio escuro. Eu continuei em pé. No mar diante de nós, duas águas-vivas começavam a subir, sem pressa. Mais ao longe, mais duas, vagarosas como pipas incandescentes, compartilhando a espiral que as aproximava cada vez mais uma da outra. Logo o céu e o mar ficou dividido por aquelas linhas brancas.

Os adultos suspiraram enquanto as crianças gritavam encantadas. Um espetáculo. Meus olhos arderam com a maresia. Minha garganta fechou. Com a vista borrada, as caudas viraram linhas brancas que depois engrossaram. Pareciam cadarços, cordas que se encontravam e se beijavam, davam nós, se amarravam, viravam uma rede de sinapses luminosas. Tornavam-se um.

Esfreguei os olhos com as costas da mão. Notei que tinha chorado.

— É mais bonito de baixo — papai resmungou.

Mari chegou quando os gametas começavam a cair, vagarosas como neve. Trazia uma mulher consigo.

— Aí estão vocês! Não conseguem ficar num canto só?

Mal percebi que papai se levantava e saía com a filha para o meio da multidão. Mari falava alguma coisa, mas também não soube o que. Meus olhos marejados se fixaram na mulher à minha frente, de pele morena, olhos verde-claros, cabelos cacheados.

Lenisa.

— Há quanto tempo, doutor?

Devo ter dito algo, pois ela sorriu, mas não lembro o que. Realmente, não me lembro. Só lembro que a garganta continuava seca, áspera, nem sei como pude dizer algo. Talvez ela sorrisse por não ter me entendido. Talvez estivesse tirando sarro de mim.

— É lindo, não acha? Me encanto todo ano.

Ela trouxe os braços para as costas e segurou os próprios pulsos sobre a lombar, como no colégio quando queria conversar, mas não sabia como, e os outros achavam que era dor por causa do trabalho.

O vento soprou os flocos luminescentes, alguns giraram como um redemoinho antes de caírem na água. Ao alcançar a falésia, balançou os cachos escuros de Lenisa. Trouxe um perfume cítrico de jasmim.

— Meu pai acha mais bonito de baixo — sussurrei.

— O meu também — ela piscou — Se ele te ver, é capaz de te matar.

— Tranquilo. Não vou ficar muito tempo.

— Não vai?

Meu estômago apertou.

— Só vim ver as águas-vivas e dar um oi pra papai. Tenho que ir.

— Tem mesmo?

Não respondi. Não sabia responder. Fiquei irritado, mas disfarcei sorrindo. Era Lenisa. Só ela me fazia sentir tanta coisa. Depois de tanto tempo, continuava confundindo minhas certezas.

— Ainda bem que Mari me trouxe — disse ela — se não, era capaz de eu não te ver. Não pensou nem em dizer oi pra Laila?

Culpa. Agora ela me fazia sentir culpa. Mas eu não tinha culpa.

— As águas-vivas te atraíram, doutor turista.

Não falou por mal, mas suas palavras me atingiram com força.

— Dizem que o que elas atraem, fica unido para sempre — tentei remediar.

— Não fica, não. — Sobre o mar negro, os flocos já iam rareando. Carros foram ligados. A música suave foi desligada. As pessoas voltavam para casa. — É só amor de verão. Passa depois de um tempo.

Acho que ela esperava uma resposta, pois ficou olhando para mim. Quando percebeu que eu não diria nada, soltou os braços e respirou fundo.

— É isso. Foi bom te ver, Mateo. Qualquer coisa, passa lá em casa.

E foi embora.

O marido a aguardava com a pequena Laila sentada em seus ombros. A menina, de cabelos cacheados, cinco anos talvez, mesma idade da Mari em sua primeira ascensão, não parecia sonolenta e deu gritinhos de alegria quando viu a mãe chegar.

— Mamãe, você viu as bolinhas? Papai disse que são filhotinhos. Vovô pode me dar um?

— Amanhã a gente pede ao vovô.

— É lindo, mamãe. É muito lindo, não é?

— É sim, filha. É sim.

— Papai disse que a gente podia subir no farol.

— Eu não disse nada.

Senti que o aperto não era no estômago, mas no peito, como se o vácuo ali dentro puxasse tudo ao redor, querendo ser preenchido, ser tocado.

Dei as costas àquela família alegre e fui procurar a minha.

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Todos os direitos de Águas de Verão reservados a Paulo Rogério Moreira da Silva, 2023.

Essa é uma obra de ficção. Nomes, personagens, organizações, lugares e situações são frutos da imaginação deste autor ou usados como ficção. Celístia não existe, mas é inspirada em cidades praianas do Nordeste brasileiro.

Qualquer semelhança com a realidade ou fatos reais é mera coincidência.

Todos os direitos reservados.

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Paulo Moreira

Brazilian pharmacist in loved with History, Fantasy and Ecofiction. Author of The Blood of the Goddess. I write about nature in poems and fantasy stories.