Vista aérea de uma floresta densa com um rio entre ela.
Vista aérea de uma floresta densa com um rio entre ela. Photo by Ivars Utināns on Unsplash

Acauã: uma história de monstro LGBT?

Paulo Moreira
4 min readJun 19, 2022

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Eu conheci o Acauã no conto de mesmo nome escrito pelo paraense Inglês de Sousa, de 1896. Bom, na verdade eu já o conhecia como um pássaro qualquer, mas não como uma criatura agourenta.

Se você ainda não ouviu falar nele, o Acauã é uma ave de rapina conhecida por comer serpentes e pelo canto escandaloso, que pode parecer uma gargalhada. Seu canto sempre prenuncia uma desgraça, como morte, chuva forte, caçadores e, no Nordeste, seca (dessa eu não sabia, pra mim esse é o papel do anum branco, mas foi o Gonzaga quem disse, então quem sou eu pra questionar?).

Acauã tá lá no conto folclórico de Inglês de Souza para prenunciar a desgraça do Capitão Ferreira. Quero destacar: o Acauã não traz a desgraça, só a prenuncia. Quem a trouxe foi o próprio Capitão Ferreira ao quebrar um tabu.

Tudo aconteceu porque, enlutado pela morte da esposa, o Capitão resolve sair pra caçar justo no dia de sexta-feira, um dia santo no qual é proibido caçar. Assim, ele não consegue capturar nenhum animal. Seu azar não para por aí, uma tempestade acaba fustigando a floresta enquanto o coitado volta para casa. Na escuridão sufocante, Ferreira escuta um grito horrível vir do rio, um grito que para ele só pode ser da Cobra Grande, serpente encantada que habita o fundo dos rios. A Cobra Grande, ele percebe, está parindo.

É aí que o Acauã canta pela primeira vez.

Pouco depois, o Capitão encontra uma canoa luminosa boiando no mesmo rio, com uma criança com a mesma idade de sua filha Aninha. Ele decide adotá-la. Dá-lhe o nome de Vitória.

Aninha e Vitória são então criadas juntas, tendo uma vida praticamente normal até chegarem à adolescência. Nessa fase de mudança, Aninha fica doente constantemente, com o rosto sempre triste e amedrontado, enquanto Vitória ganha características masculinas, assustando os outros homens e metendo-se no mato. Durante os sumiços, Aninha adoece ainda mais. Embora troquem certa intimidade, Aninha sempre fica acanhada na presença da irmã.

Chegando a idade de casar-se, Aninha recusa todos os pretendentes até que o pai a obriga de uma vez por todas, esperando que isso devolva a felicidade da filha. Ela se tranca no quarto até o casamento, só deixando Vitória entrar, que sempre sai dali furiosa.

Quando finalmente chega o dia do casamento, Vitória não aparece na igreja. Aninha aparenta-se feliz, mas quando o vigário lhe pergunta se está casando livremente, ela começa a tremer e não responde. Seu olhar assustado se dirige à porta lateral da sacristia.

Lá está Vitória, com serpentes no lugar dos cabelos, pele verde e língua bipartida. Uma mulher cobra encarando furiosa a noiva. Aninha desesperada cai do altar e, depois que a irmã desaparece, passa a ter convulsões. Numa crise histérica, dobra os braços como um pássaro e começa a gritar: “Acauã! Acauã!”

A desgraça da ave se concretiza.

Quando eu li o conto pela primeira vez, focando no caráter mágico, considerei que a fraqueza de Aninha era por que Vitória sugava suas energias de alguma forma, como o Drácula de Bram Stoker bebendo o sangue de Lucy. Eu não considerei que suas crises poderiam ser de um amor reprimido, algo que é inclusive mencionado pelo povo do vilarejo. Mas não por um rapaz, como o povo do conto pensa, mas por uma mulher, pela sua irmã adotada, Vitória.

Nessa interpretação, o tabu do incesto, do homossexualismo, bem como o abandono da irmã no fim do conto, lhe trouxe um conflito interno que ela não era capaz de suportar, desencadeando a crise histérica.

No entanto, essa não seria a única interpretação possível. O conto também nos faz entender que o relacionamento entre as duas irmãs não parecia consensual, mas sim uma relação de “senhora” (Vitória) e sua “escrava” (Aninha). Teria apenas Vitória se apaixonado por Aninha? Pensando desse modo, o medo de Aninha seria por recusar a relação, ou por provavelmente conhecer a natureza monstruosa da irmã, o que a deixava em seu estado doentio.

Eu não poderia terminar essa análise sem mencionar uma moral ecológica da narrativa. A quebra do tabu pelo Capitão Ferreira ao caçar em dia proibido pode ter sido a causa de toda a tragédia das filhas, mostrando que são as futuras gerações que mais sofrem as consequências do desrespeito pela natureza.

Como toda história folclórica, o conto Acauã rende diversas interpretações.

É claro que podemos considerar Acauã como tendo personagens LGBT, mas já não podemos considerá-lo como um conto que defende a causa LGBT. Convenhamos, o conto é de mais de um século atrás, reflete uma moral e valores antigos. Diz mais sobre o modo de pensar da sociedade da época. Tratar orientação sexual como uma punição por um pecado dos pais, relacionar o homossexualismo com monstruosidade e não deixar o casal homossexual junto no fim não é tão bem visto e aceitável atualmente.

Os tempos mudam. Valores também.

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Paulo Moreira

Brazilian pharmacist in loved with History, Fantasy and Ecofiction. Author of The Blood of the Goddess. I write about nature in poems and fantasy stories.