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A Estrada dos Heróis III

Luta Ardente

Paulo Moreira
29 min readMar 28, 2023

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Ainda era madrugada, mas a nova comitiva já estava partindo sobre as escadarias de Ederon. A névoa espessa ameaçava esconder os edifícios lá em cima, borrando os picos e torres mais altos. O frio persistente uivava qual um lobo solitário, aspergia orvalho nas rochas e deixava os degraus escorregadios.

— Esperem! — alguém gritou.

Todos viraram-se, surpresos com a voz. Passos apressados deslizavam na escadaria, vinham de uma sombra alta logo atrás, mais oculta pela escuridão do que pela neblina em si. As janelas de Ederon às suas costas tremeluziam como estrelas laranja. A sombra era Anar, o filho de Veridor, que descia rápido mas cuidadoso os degraus da montanha para alcançá-los. Trazia algo em suas mãos, e veio diretamente a Glaudir.

Elenne repreendeu-o: — O que faz aqui? É perigoso ir à terra sozinho, principalmente com uriarques por perto.

— Sei disso, irmã — ele respondeu, impaciente. Quase não olhou para ela. — Mas não venho em vão. — Aproximou-se ainda mais de Glaudir, revelando o que segurava. Era uma capa branca com capuz. Um broche prateado a prendia no pescoço, com o formato de uma pequena coruja de asas abertas. — O tempo é cruel para nós, imortais alvanes. Ele nos faz esquecer de muita coisa, como essa. A mulher que avisou meu pai sobre a ondori trouxe consigo esse manto há muito tempo, tecido por suas próprias mãos. Contava que meu pai o entregasse a quem resolvesse portar a joia, para mantê-los protegidos de si mesmos. Meu pai pede desculpas por não tê-lo passado aos guardiães, mas agora, considerou pertinente conceder o pedido e dá-lo a você, o Último. Vista-o bem.

Glaudir ia pegar a capa quando Anar foi às suas costas e colocou-a sobre seus ombros. O pano era fino, macio. Gelou as omoplatas do ivirez antes de esquentá-las. Glaudir prendeu a capa com o broche de coruja, e não deixou de sorrir. Avistou a espada mágica em sua perna, dentro da bainha de bordas azuladas. O cabo dourado e as pedras verdes brilhariam se não estivesse tão escuro. Glaudir parecia um verdadeiro cavaleiro, aquele das histórias infantis que salvavam donzelas indefesas. Ele se permitiu fantasiar, até a bengala lembrá-lo da verdade. Não, ele não era um cavaleiro. Era um viajante.

— Tudo isso para protegê-lo, Último Guardião — murmurou o alvane, antes de se despedir e penetrar a névoa cada vez mais forte escadaria acima. Embora as janelas ainda luzissem, as nuvens já escondiam Ederon, transformando suas torres em borrões escuros.

Glaudir voltou a descer a montanha ao lado dos antigos e novos companheiros de viagem. Bardoel estava mais abaixo, acompanhado de Elenne e seguido de perto por Zadur. Daro e Nirener iam bem próximos, mas sem trocar uma palavra sequer. Atrás de todos estavam os três ivirezes, escutando alguém tocar lira nos pátios de Ederon. Eram os únicos a escutar tal canção, e talvez por isso sentiam-se mais motivados que os outros.

Não havia sinal da aurora, pois estavam sob a sombra da montanha. Mal perceberam quando os degraus viraram uma mistura de barro e pedra. As rochas foram substituídas por um caminho de terra batida enquanto o monte ficava menos íngreme, e depois, o caminho sumiu por completo, para que não achassem o caminho de volta. Glaudir até tentou encontrar Ederon outra vez, mas uma nuvem espessa engolia o alto dos montes, escondendo os edifícios em seu interior.

Não foi um desafio fazer com que Daro fosse aceito na comitiva. Ele havia vindo com os ivirezes, e já provara ser confiável na Mata Negra. Claro que não suspeitavam que ele era o admirável Raio Branco, mas estranharam Glaudir ter deixado o mascote sob os cuidados de um alvane qualquer. Não havia razões para Daro se transformar, pelo menos não diante dos outros, e ele levava Vardon pendurada em seu cinto. Assim, o segredo seria mantido por um bom tempo, era o que achavam.

Como esperado, Bardoel, Elenne e Zadur foram os primeiros a alcançar o pé da montanha, e tiveram que aguardar a chegada dos outros. A alvane e o huart ficaram sentados em uma rocha, observando os montes redondos do leste.

Alguém apareceu com dois cavalos no encalço, puxando-os pelas rédeas. Bardoel se dirigiu a ele, acenando alegremente. Um dos animais, o vermelho, relinchou e balançou as crinas negras, como se saudasse o príncipe. Nirener acelerou os passos para acariciar o pescoço do outro, este completamente branco. Glaudir conhecia aquele segundo cavalo, de pernas tão musculosas que parecia um cavalo de corrida. A ondori já havia o mostrado quando ele fugia dos Servos das Sombras. Bardoel e Nirener pediram desculpas por terem que deixá-los para trás, e talvez os animais tenham ficado tristes com isso, pois ficaram imóveis quando o estribeiro os puxou de volta.

— Deixem comigo! — acalmou o alvane. — Nasceram pra correr, esses cavalos. Se me permitirem, cavalgarei toda manhã com eles pra aliviar o estresse da caverna.

— Minha comitiva chegará a qualquer momento com outros cavalos — esclareceu Bardoel. — Yaruk ficará mais obediente depois, eu garanto. Mesmo assim, cavalgue com ele, mas não nele. É um cavalo real. E tenha muito cuidado. Há uriarques no Rio Surimayva.

— Não ousaria ir ao oeste, alteza — ele piscou na última palavra, debochado, e foi embora com os cavalos.

Elenne levantou-se e pousou a mão no ombro de Bardoel, como uma velha amiga: — Quando vai perceber, Bardoel? Ederon não gosta de reis.

A aurora começou a subir ociosa sobre a Cordilheira de Andrus, ao passo que a neblina se dissolvia à sua luz. O orvalho das plantas cintilou como areia de cristal. O céu passou de cinzento a azul, e os picos nebulosos resplandeceram, cheios de raios dourados. Mas como o caminho avançava através de uma fenda nas montanhas, nenhum dos viajantes pôde contemplar o belo nascer do sol no horizonte.

Eram mais ou menos nove horas da manhã quando alcançaram os morros arredondados. Eles não eram íngremes, e nem havia pedras soltas para derrubá-los, assim conseguiram avançar um pouco mais que o previsto.

Mudaram o rumo, agora para o sul, seguindo um trajeto elaborado por Bardoel, Zadur e Nirener, este último sempre atrás de todos, caminhando pensativo entre as colinas. Estava quieto, com o capuz sobre a cabeça, usando a encantadora bengala como apoio. Não usava armas para se defender, e raramente abria a boca para falar. Quando o fazia, conversava apenas com Zadur e Elenne. O vento empurrava sua capa azul, e de vez em quando derrubava o capuz, mas o feiticeiro fazia questão de cobrir a cabeça novamente por causa do sol.

Docus observou Nirener e Glaudir, encontrando semelhanças curiosas nos dois.

— Capa, bengala… Quem sabe você não será um dos Mestres da Magia — ele riu, com as flechas-safira chocalhando na aljava.

Docus não era o único a usar flechas. O Príncipe Bardoel mantinha nas mãos um arco vermelho e uma aljava carregada de flechas negras nas costas, e ainda uma espada pendurada em seu cinto. Elenne também levava uma espada, um gládio de dois gumes, e era a única com escudo, uma tarja redonda sem insígnia para não revelar sua origem. Fizera questão de esconder facas sob o cinto, pois era uma boa atiradora. Ela tinha um colar parecido com o de Glaudir, mas o frasco estava cheio de água em vez de luz. Já o huart Zadur era o mais preparado, sem se importar com o peso dos materiais. Carregava consigo uma cimitarra, um par de soqueiras afiadas, braceletes, um elmo com asas de dragão e uma faca longa. Os ivirezes não sabiam dizer se o huart conseguira tudo aquilo em Ederon ou se havia trazido desde as Montanhas de Klopus. Veridor e Nirener advertiram que as pessoas desconfiariam deles com tantas armas, no entanto, Zadur e Bardoel insistiram, deixando claro que não se hospedariam na casa de ninguém devido à urgência da missão.

Ao notar aqueles detalhes, Glaudir murmurou para seus companheiros:

— Estamos tão seguros agora que nem Sireyg pode nos vencer.

Nirener o escutou, seus olhos brilharam sob a sombra do capuz.

— Não subestime o poder de um necromante. E armas não garantem proteção, só confiança, as quais, nas mãos de um tolo, podem muito bem levá-lo ao desastre.

O dia passou rápido. A Estrada ainda não era vista, ainda escondida atrás das colinas. Aves gritavam no alto da Cordilheira de Andrus, deslizando no ar com suas asas escuras. Águias rodeavam os picos inalcançáveis, protegendo seus ninhos, mas os abandonavam ao se depararem com alguma lebre a passear entre os capins. Fazia calor, mesmo com o vento constante, pois o sol brilhava forte no céu sem nuvens.

Nesse mesmo dia, Nirener quis tirar umas dúvidas com Zadur. Daro estava perto, assim, pôde escutar o diálogo dos dois.

— Não deixei de notar que de quando em quando você mete a mão no bolso, como uma mania — exclamou Nirener. Zadur manteve a vista firme à frente, sem responder. Daro também havia reparado aquelas atitudes do huart, mas ignorara. — Em seguida, olha para todas as direções, parando sempre no sul.

Zadur pigarreou: — Promete guardar segredo?

— Só se tiver um bom motivo para isso, você tem?

Um novo silêncio afogou as colinas. Daro desviou o rosto quando o huart o percebeu, fingindo olhar uma toca de aranha. Nirener aguardou sorridente a resposta.

— Tenho olhos de águia! — Zadur declarou, coçando a barba ruiva. Nirener riu baixinho. — Não acredita? Pois é a verdade.

— Não é isso, meu caro Zadur. Já ouvir dizerem que huarts veem no escuro devido ao tempo que passam embaixo da terra. Olhos de águia é uma informação nova, só estou surpreso.

— Seja lá onde você ouviu isso de ver no escuro, não é o meu caso. Bom, na minha viagem de Thodro-tuhyo até Haldom… — ele hesitou mais uma vez, olhando ao redor. — Encontrei um objeto…

Mal concluiu a frase e Nirener entendeu tudo: — Arrah! Não prossiga, por favor. Acho que esse objeto será muito útil. Mas você não deveria dizer que tem olhos de águia, e sim que “ganhou” olhos de águia.

O feiticeiro riu novamente, com uma sobrancelha mais alta que a outra.

— Se já entendeu tudo e acredita em minhas palavras, por que ainda está rindo?

— Ora! Por que não riria? Relaxe, não estou zombando de você. Estou rindo das brincadeiras do destino. Esse objeto já passou por minhas mãos, e eu fiz com que se perdesse. Agora está na minha frente de novo. É engraçado, não?

— Ainda não achei motivos para rir — resmungou o huart, cortando a diversão do companheiro.

Daro não entendeu muito bem a que objeto Zadur e Nirener se referiam, se era mesmo um objeto, então retornou para juntos dos ivirezes, que não precisavam conversar com enigmas.

À tarde, deixaram as colinas para trás, já com a Estrada à vista. Ela fazia uma grande curva para o oeste, cortando um lençol de gramíneas, até ser escondida pela Cordilheira de Andrus. Assim que o sol baixou, a Estrada voltou a sumir, agora atrás das colinas.

Em seu trajeto, a comitiva se deparava com dois cenários opostos. Quando olhavam para a direita, se deparavam com a serpente de montanhas rastejando de norte a sul, mas quando olhavam para a esquerda, avistavam um ermo preguiçoso que se estendia sem árvores e elevações. Apenas uma virada de rosto revelaria os extremos: uma cordilheira e um deserto. E a comitiva estava entre eles, seguindo em frente enquanto o sol aquecia e esfriava, se elevava e repousava.

Um novo pôr de sol trouxe o vento frio e uivante das montanhas, fazendo os aventureiros encolherem os braços. Glaudir sentiu-se grato por ter recebido uma capa, pois a ondori ficava ainda mais gelada com o toque da brisa. Raios vermelhos partiram o horizonte montanhoso, sinais de um sol orgulhoso. Embora exausto, o astro transformou a face oeste da Cordilheira de Andrus em uma enorme labareda, como se não quisesse a chegada da noite sufocante.

O crepúsculo não durou muito. As estrelas apareceram logo, logo, alfinetando o céu azul. O céu se arroxeou, escureceu. E quando a noite enfim apagou a abóbada, Bardoel parou à frente de todos, os olhos voltados a Elenne:

— É melhor descansarmos aqui — disse — Me encarrego da primeira vigília.

Ninguém discordou. Estavam cansados demais para discutir, só queriam beber água, comer um pouco e se entregar ao sono.

Zadur caiu sentado nos capins. Ele não carregava apenas armas, levava também uma mochila pesada consigo, que arremessou sem nenhum cuidado para longe.

— Nada melhor que uma hora de sono para tirar o peso de um dia de viagem — exclamou, respirando fundo. — Mas com certeza vou precisar de mais que uma.

Tido como o líder do grupo, ou melhor, se comportando como tal, Bardoel ordenou para que Daro acendesse a fogueira. A missão não seria tão fácil quanto imaginavam. Não havia árvores por perto, só gramíneas incapazes de manter um bom fogo. Ele precisou sair para mais longe à procura de gravetos e galhos perdidos. Elenne se dispôs a ajudá-lo, juntando pedras e criando um círculo onde seria acesa a fogueira. Também arrancou o capim próximo do círculo, para que nenhuma chama se espalhasse. Daro retornou com as mãos cheias de galhos e folhas secas, iluminado pela luz suave da lua crescente, e então, Glaudir acendeu a fogueira com pedras de fogo trazidas de Ederon — seus fósforos já haviam acabado há dias.

Todos sentaram-se ao redor da chama, menos Nirener que permaneceu quieto e afastado. A fogueira crepitava bastante, lançando várias faíscas, além de uma fumaça fedida que irritava as narinas. Daro se desculpou. Havia retirado os galhos de arbustos desconhecidos, mas eram os únicos naquela paisagem sombria. Não havia outra opção. Hargot não se importou e deitou-se ali perto mesmo, fazendo a bolsa vermelha de travesseiro.

Quando todos cochilavam, Glaudir encarou Bardoel. O Príncipe mantinha o rosto na direção do rio que atravessava a Garganta de Maldok. Seus cabelos loiros quase espetavam os olhos devido à força do vento.

— Nirener! — ele chamou, baixinho para não acordar os outros. — Pode me substituir à meia-noite?

— Deixe comigo.

A voz forte de Nirener assustou Glaudir. O feiticeiro continuava afastado, metido nas sombras da noite. Estava sentado, com o queixo sobre a bengala. A pedra piscava, bem como seus olhos azuis. Foi olhando aquela face negra, escondida pelo capuz, que Glaudir dormiu. A fogueira continuou a estalar enquanto os grilos cricrilavam nas gramíneas.

De repente, Glaudir despertou, assustado por um pesadelo. Embora frágeis, as brasas da fogueira ainda aqueciam as suas costas. A lua já havia sumido no horizonte e nuvens espessas cobriam as estrelas, baixas o suficiente para tocar as montanhas. Os grilos continuavam cantando, agora em meio a sapos que coaxavam nas sombras.

O ivirez encolheu-se sob o lençol. Observou os companheiros, também encolhidos como minhocas na lama. O vento forte trazia vozes incompreensíveis, levantava flocos de areia. Nirener não se via, mas seus passos estavam marcados no chão, indicando que passara a noite andando de um lado a outro. Glaudir virou-se, pensando que o feiticeiro havia tomado o lugar de Bardoel, mas ele não estava lá. As faíscas da fogueira diminuiam, dissolvendo-se nas brasas alaranjadas.

Preocupado com o sumiço do Mestre, Glaudir levantou-se, segurando a bengala. Bardoel dormia ao lado de Elenne, o que comprovava que realmente estavam durante o turno de Nirener. Logo depois, o ivirez voltou o rosto às montanhas, cujos picos se escondiam no mar de nuvens. Bem no meio dos montes arredondados, um vulto alto seguia adiante a passos largos. Embora estivesse um pouco distante, Glaudir pôde reconhecê-lo. Era o feiticeiro das águas, quase correndo em disparada rumo à Cordilheira de Andrus.

Sem pensar em acordar os outros, Glaudir avançou ao encontro de Nirener. O vento empurrava sua capa branca, mas por sorte talvez, ela não se prendeu em nenhum arbusto do ermo. Sem poder dar a volta nas colinas, Glaudir escalou-as com ajuda da bengala, fazendo o possível para não perder aquela sombra de vista. Ao chegar ao topo de uma delas, reparou que Nirener havia parado e encarava o ivirez. Parecia uma estátua na escuridão. Glaudir recuperou o fôlego, exausto devido à corrida, e ouviu o rio chocalhar veloz bem atrás de Nirener.

O Mestre aguardou sua chegada, o semblante oculto pelo capuz. Ao alcançá-lo, Glaudir mal teve tempo de comentar nada:

— Faça silêncio! — ordenou o feiticeiro, voltando a seu trajeto misterioso.

Glaudir o seguiu entre as colinas, embora não conseguisse acompanhá-lo direito, sempre se afastando e topando nas pedras ocultas pela noite. Percebeu que seguiam o curso oposto da correnteza do rio, para a Garganta de Maldok, dois paredões de rocha negra que se esticavam ao céu e barravam o vento ruidoso, trazendo um silêncio aterrador à região. Apenas as corredeiras do rio quebravam a quietude do local, um sussurro frio e molhado que guiava os curiosos.

Talvez Nirener tenha notado o cansaço de Glaudir, pois diminuiu os passos frenéticos. A sombra da Garganta de Maldok tornava a noite bem mais negra que o ermo em que haviam acampado, e se não fosse pelo brilho na bengala do Mestre, o ivirez se chocaria contra ele, empurrando-o para as águas céleres do rio.

— O que foi? — perguntou Glaudir, mas Nirener não chegou a responder.

O feiticeiro abraçou o ivirez de uma hora para outra, tampando sua boca. Jogou-se contra o paredão da garganta junto do companheiro. Levou o dedo indicador aos lábios em sinal de silêncio e afastou Glaudir para suas costas, como se quisesse escondê-lo. Não esqueceu de apagar o brilho azulado da bengala e agachou-se ainda mais. Glaudir podia sentir as veias pulsarem na mão rugosa do Mestre. Nirener estava nervoso, os olhos imóveis num ponto à frente entre os paredões.

Atrás de Nirener, Glaudir não conseguia ver muita coisa, então, contentou-se em observar o alto do penhasco rochoso. As nuvens avançavam sobre os picos das montanhas como uma enchente devastadora, transformando tudo em um breu gelado e sufocante. Não havia luz de estrela capaz de atravessar nuvens tão pesadas quanto aquelas. Logo depois, Glaudir tentou ver em que Nirener mantinha os olhos, mas a capa e o corpo alto do feiticeiro o impediram. “O que o deixou tão nervoso?”, pensava ele, impotente.

Dormindo perto das brasas calmas da fogueira, os viajantes sequer imaginavam estarem sem vigia. O frio do ermo lhes fazia tremer e encolher no chão, todavia, nenhum deles abria os olhos para investigar qualquer coisa. O cansaço era grande demais.

Deitado ao lado de Hargot, Docus repousava, respirando alto como de costume e com os dentes tilintando. Seus pés coçavam de tanto terem sido picados por mosquitos e arranhados pelos arbustos da viagem. O issacerez arrumou coragem para abrir um dos olhos e avistar a luz vermelha da fogueira no meio do círculo de dorminhocos. Havia ainda uma delicada luz azulada na bainha de Deriel. Ele ignorou, podia muito bem ser a lua lhe pregando uma peça. E voltou a fechar os olhos.

Não havia sinais de que o silêncio do ermo acabaria. A calmaria só era perturbada de quando em quando pelo ruído gélido do vento. Docus conseguia escutar o crepitar da fogueira nitidamente, imaginando as faíscas saltando em direção à brisa. Os grilos cantarolavam nas folhas dos arbustos sem se cansarem, muito menos atrasarem o ritmo.

Logo, uma sombra enegreceu ainda mais as pálpebras fechadas do issacerez. A fogueira parou de estalar e seu calor diminuiu. Os insetos pararam de zunir, o vento calou-se. Alguém murmurava algo incompreensível ao longe, nas montanhas. Docus relaxou. Sem vento e sem grilos para perturbá-lo, conseguiria dormir mais rápido.

Foi aí que começou a sonhar, com sons e não com imagens. Batidas repetiam em sua mente, tão reais que pareciam trovões. Talvez fossem mesmo trovões, a noite estava tão fria e cheia de nuvens… Ou seriam batidas de um relógio? Com o tempo, seu ritmo se apressava, como… corações batendo. Vozes baixas chamavam alguém, vozes do vento calmo, vozes sussurrantes que ele não sabia compreender. A terra tremia de quando em quando, quase no mesmo ritmo do pêndulo, ou seriam agora marteladas numa bigorna? Docus se assustou quando ficaram tão altas e claras de repente. E então um tinido, cortante como o grito de uma águia faminta.

Docus arregalou os olhos, encontrando a origem das batidas. Era o inimigo que se aproximava.

Levantou-se em um segundo e a tontura quase o derrubou. Três sombras vinham cavalgando na escuridão da noite. O issacerez puxou uma flecha-safira da aljava e armou Saneraor, o arco criado pelas mãos de Veridor, o fundador da Ordem Iluminada.

— Acordem! Estamos em perigo! — gritou ele. Todos se levantaram, confusos, enquanto os cavaleiros cortavam a brisa com as espadas nuas e opacas.

Por instinto, Hargot saltou na direção da mochila e colocou-a nas costas, enquanto Daro agarrava a de Glaudir ao perceber que este havia sumido.

— Onde estão Nirener e Glaudir? — perguntou Hargot, com Deradol erguido em suas mãos. Ninguém respondeu, estavam assustados demais para pensar. Zadur tirou a cimitarra e encarou os Servos das Sombras a se aproximarem com velocidade impressionante. Detinham uma energia sobrenatural que silenciava seus cavalos e escurecia o cenário ao redor, causando arrepios nos viajantes.

Elenne tirou duas facas do cinto e lançou-as nos inimigos. Como esperado, eles conseguiram se defender, ricocheteando-as com as espadas em direção à comitiva. Graças ao escudo, Elenne conseguiu se proteger de uma, mas a força do contra-ataque foi tão forte que a faca ficou cravada na madeira.

— Por que fez isso? Podíamos ter fugido! — Hargot reclamou.

Bardoel avançou, a espada comprida à sua frente e o arco vermelho nas costas. Quase no mesmo instante, Hargot puxou a mão de Docus, fazendo-o derrubar a flecha e forçando-o a correr para as colinas.

— Para onde vamos? — indagou o issacerez, sem opor-se à corrida.

— A um lugar onde possamos nos esconder.

Docus reparou que Hargot o levava para perto do rio. Ao voltar os olhos à comitiva, viu Bardoel desviando de um ataque mortal do inimigo. Os Servos das Sombras começaram a correr em círculo ao redor de todos, encurralando-os com suas espadas e as pernas esmagadoras dos cavalos. Ainda não estavam atacando de verdade, mas diminuíam o círculo cada vez mais. Queriam assustar os viajantes primeiro, depois cortá-los pouco a pouco com as lâminas afiadas. Parecia uma dança macabra. Docus conseguia ouvir as vozes dos fantasmas, eles sorriam.

— Precisamos ajudá-los! — exclamou.

— Nossa missão nunca foi essa — Hargot retrucou. Insistia em levar o amigo a algum local seguro, apertando tanto sua mão que Docus já a sentia formigar.

Em resposta à declaração inesperada de Hargot, Docus o empurrou com o ombro, atingindo sua perna com o arco logo depois. O amigo precisou soltá-lo para não cair em cima da própria espada. Docus voltou o trajeto, rápido como uma lebre, mas Hargot sequer virou o rosto para vê-lo. Reequilibrou-se e continuou a correr, abandonando os companheiros e desaparecendo nas sombras das colinas.

Zadur estava tão assustado que ficara de cócoras para não ser atingido pelas espadas dos cavaleiros. A cimitarra, pálida como a lua cheia, não lhe seria útil contra inimigos velozes como aqueles. Ele tremia, tentando se afastar de Elenne. Por ter um escudo, a moça se tornara o alvo principal dos Servos das Sombras que zombavam de sua resistência, tentando cansá-la para que baixasse a defesa.

Aproveitando-se da distração dos cavaleiros, Docus atirou uma flecha-safira, acertando em cheio o rosto de um deles. A sombra despencou, mas o cavalo esquelético continuou dando voltas, seus olhos escarlates furiosos ao ver o issacerez. Outro Servo das Sombras parou de cavalgar e observou o arqueiro com curiosidade. Girou a espada em suas mãos algumas vezes antes de sussurrar:

Ivirez… ondori…

Docus ficou imóvel, apavorado com as palavras. O inimigo acreditava que ele era Glaudir, o Último Guardião. Numa hora como aquelas, isso não era algo para se orgulhar.

Assim que Bardoel preparou-se para contra-atacar, um grito perfurou os ouvidos de todos. Vinha das montanhas, um misto de uivo e palavras macabras que levantou a areia e produziu redemoinhos. Zadur tampou os ouvidos enquanto observava a Garganta de Maldok. O príncipe parou ao seu lado, a espada trêmula quase escapando de suas mãos.

De uma hora para outra, os Servos das Sombras partiram qual folhas secas sopradas pelo vento. Flutuaram sobre a terra árida rumo ao Sul, com uma fumaça espessa no lugar das capas, até sumirem completamente na escuridão da noite. Os cavalos permaneceram, mas agora, cobertos por uma pelagem selvagem e eriçada, pareciam inofensivos. Seus olhos tristes não se afastaram do sul por um bom tempo, tentando encontrar os cavaleiros maléficos. Quando perceberam que os Servos das Sombras não voltariam, galoparam na direção contrária, relinchando de alegria.

— Onde está Nirener? E Glaudir? — questionou Bardoel. Novamente, todos ficaram quietos. — Ninguém sabe para onde foram?

Docus tentou acalmar o príncipe: — Não podem ter atravessado o rio. Talvez Nirener tenha ido investigar os uriarques e Glaudir o seguiu. Nosso amigo não costuma fugir sozinho.

— O turno era de Nirener! Ele é responsável por tudo que aconteceu aqui — insistiu Bardoel.

Zadur olhou outra vez as colinas na direção da Garganta de Maldok, agora mais atento. Havia muitas nuvens ali, por isso o huart não conseguiu distinguir os detalhes das montanhas erguidas como vultos enormes no horizonte.

— Suspeito que foram para a Garganta de Maldok — disse ele.

Elenne também observou a região sombria, ainda com o escudo no antebraço. De vez em quando, relâmpagos rubros clareavam os picos, seguidos por trovões abafados.

— Foi de lá que o grito veio — ela apontou. — , o que dispersou os Servos.

Daro confirmou, escalando uma barreira para ver melhor: — Posso sentir que eles estão lá, Nirener e Glaudir.

Bardoel sorriu, não por achar graça, mas para tentar tirar o próprio medo:

— Como sabe disso?

— Instintos — o rapaz respondeu, cruzando os braços.

— E o que mais dizem esses seus instintos?

— Que estão em perigo. Em grande perigo.

Um pouco antes de os Servos das Sombras terem se deparado com a comitiva, as nuvens que consumiam a Cordilheira de Andrus começaram a reluzir em fagulhas vermelhas. Glaudir se assustou, ainda pressionado por Nirener contra a montanha. Um raio de medo percorreu seu corpo, dos pulmões até os braços, sufocando-o. O coração batia tão forte que a ondori se movia sob sua camisa.

Os dois tentaram se acalmar. Estavam cobertos pela sombra da garganta, ninguém os veria ali. Nirener soltou a boca do ivirez, e agora o rapaz podia avistar a Garganta de Maldok com mais clareza. O rio corria como uma estrada cintilante entre os paredões. Ao lado dele, duas sombras estavam paradas uma à frente da outra. Os olhos de Nirener se dirigiam a elas.

Glaudir sentiu os cabelos se moverem. A noite havia começado a soprar um vento quente, vinha do alto das montanhas e ficou mais forte ao tocar os dois estranhos. Um deles usava capa longa, negra como piche. Era rasgada ao meio e cheia de farrapos nas pontas, lembrava a Glaudir as asas de um corvo em decomposição. O segundo, sem capa, mantinha-se a uma boa distância do companheiro. Apontava algo longo, talvez uma espada.

Logo, o homem de capa foi envolvido pelas sombras das nuvens e agigantou-se. Uma sombra animalesca apareceu, seus passos eram tão pesados que ondulavam as águas do rio. O homem de capa saltou em seu dorso e disparou rumo ao oeste, para onde exatamente Glaudir não conseguiu ver. Teve a ilusão de que a fera havia afundado no solo antes de sumir. O outro estranho continuava em seu canto.

— Silêncio — sussurrou Nirener, trazendo Glaudir para a realidade.

O vulto se virou na direção dos dois. Glaudir não era capaz de ver, mas sentiu os seus olhos famintos caçando alguma coisa. O ivirez teve medo e escondeu o rosto na capa do feiticeiro, pintada de cinza-escuro pela noite. Um tinido rasgou as sombras e o estranho começou a gritar:

Thelúi ashen, me nih shevet adren! Líled u aboro, caluí meret naeden!

Era uma bruxaria, Glaudir tinha certeza. O vulto os encontrara, e alguma coisa iria aparecer contra eles. Nirener suou frio. Os dois apertaram suas bengalas quase partindo-as com tanta força. Não permitiram que elas tocassem o chão.

— Ele não nos viu — cochichou Nirener no ouvido de Glaudir quando nada aconteceu.

O vulto continuava os encarando, imóvel com o objeto comprido na mão. Glaudir escutou alguns estalos, um crepitar de fogueira vinha com o vento quente, mas nenhum deles da direção do estranho.

— Pelas Luzes! — Nirener gritou. Olhava para o céu, os olhos antes azuis agora faiscavam vermelhos diante dos relâmpagos nas nuvens.

No mesmo instante, uma voz sussurrante os alcançou, embriagada por uma mistura de fúria e repressão. Era a mesma voz que dispensara os Servos das Sombras na Floresta das Grandes Árvores:

— O que faz aqui, feiticeiro? — Não era uma pergunta, era um aviso.

Fagulhas despencaram, ardendo sobre a vegetação montanhosa. Nirener puxou Glaudir mais uma vez enquanto raios e trovões arremessavam tochas e partiam os picos da cordilheira. Algumas nuvens lançaram chamas pesadas que caiam qual estrelas cadentes, marcando o ar negro com o vermelho vivo de suas caudas.

Glaudir jamais soltaria a mão do Mestre. Os dois correram na beirada do rio, pois o cascalho molhado amenizava o calor. Mais adiante, as pedras estouravam no meio de um círculo de fogo, gerando uma fumaça fedida e pretíssima. Não demorou para Nirener perceber que não daria tempo de fugir das estrelas de fogo, então saltou no rio levando o coitado do ivirez consigo. Ele prendeu Glaudir em seus braços enquanto afundavam para longe, esperando que a tempestade diminuísse. As chamas resplandeceram na superfície do rio, esquentando-a. Chegaram a perfurar as águas, velozes como dardos, mas se apagavam num ramo de bolhas antes de alcançarem os fugitivos.

As chamas foram diminuindo ao passo que Nirener e Glaudir afundavam mais e mais na escuridão silenciosa do rio. Quando notou que já era seguro, o Mestre apontou a bengala para baixo, ainda abraçando o ivirez com o outro braço. Uma luz índigo desabrochou no objeto, puxando redemoinhos e bolhas para o leito do rio. A capa do feiticeiro se esticou, bem como seus cabelos, movidos vagarosamente pela nova correnteza.

Glaudir espiou admirado a estrela azul da bengala. De súbito, sentiu-se jogado à frente de um portão negro, caído exausto como um mendigo. O portão estava trancado e, atrás de sua muralha, era possível ver um morro coberto por gramíneas cinzentas e molhadas. Glaudir conhecia aquele lugar. Estava diante da Residência do Rei Oculto e da Rainha dos Cristais, contemplava a curiosa tocha azul pregada em seu portão. Aquele fogo não era comum. Despedaçava-se em faíscas semitransparentes, pintava a muralha com um círculo de luz. Alguma coisa murmurava no fogo, de voz calma, humilde.

Quero ajudá-los nessa difícil missão.

Quase chegando ao fundo do rio, Glaudir tocou o cinto. Sentiu Verneti e puxou-a aos poucos para fora da bainha. Ele tinha uma arma. Podia se defender.

Nirener levantou a bengala, esticando o braço o máximo que podia. Várias bolhas começaram a subir das profundezas, tantas que Glaudir achou que o rio estava fervendo. A forte correnteza empurrou os dois para o alto enquanto a luz da bengala enfraquecia. Assim que eles alcançaram a superfície e puderam enfim respirar, ela apagou-se completamente, libertando as águas de seu comando.

O Mestre nadou junto do ivirez até a beirada. Sua pele resplandeceu quando ficou de pé sobre o cascalho. Os dois estavam igualmente encharcados, mesmo assim, podiam sentir o calor absurdo enrugando o rosto. O fogo maldito ainda incendiava a região ao redor, carbonizando a terra. Suas chamas se esticavam ao céu e criavam sombras compridas que corriam trêmulas de um lado a outro. Alguns picos cintilavam rubros como faróis, atingidos pelas estrelas e raios fumegantes. E a fumaça fétida estava tão espessa que nem o vento conseguia dispersá-la mais.

As ondas do rio fizeram cócegas nos pés de Glaudir, este de joelhos no cascalho. Ofegante, espiou as labaredas à sua frente, reparando que se abriam em um certo ponto. Uma sombra passeava naquele caminho livre, vinha na direção dos aventureiros. Glaudir não tinha dúvidas de que era Sireyg, o Alvane das Trevas, tão perto de sua cobiçada ondori.

O ivirez apoiou-se na bengala e levantou-se; na outra mão, apertava o cabo da espada, mantendo-a o mais firme possível. Mas Nirener segurou seu pulso e empurrou Glaudir para trás de si, tentando afastá-lo dos olhos de Sireyg.

— Não me ouviu, maldito feiticeiro? — gritou a sombra. As línguas de fogo se distanciaram dela ainda mais, soltando faíscas nervosas, como se quisessem mostrar o seu mestre perante todos. — O que faz aqui?

Nirener permaneceu mudo, a bengala trêmula em sua mão. Um resmungo animalesco veio da direção de Sireyg, como se ele rosnasse baixinho. Logo o bruxo ergueu as mãos ao céu e soltou um novo grito, este bem mais agudo que o anterior. As nuvens assobiaram, seu vento empurrou as chamas rubras para as bordas do rio. O fogo alongou-se, tomou a forma de uma onda cheia de brasas crepitantes. Com tanto calor, o rio borbulhou.

Glaudir abraçou Nirener pelas costas. O feiticeiro esticou o braço, cortando o vento impetuoso com sua bengala antes que ele os alcançasse. Com isso, a onda de fogo também se partiu, abrindo-se em duas cortinas ardentes. Suas fagulhas ainda pularam para perto de Glaudir, como se tivessem vida própria, mas dissolveram-se em fumaça logo em seguida.

Nirener, o feiticeiro das águas, resolveu contra-atacar. Enfeitiçou as águas pesadas do rio e puxou-as para cima do incêndio. Elas deslizaram sobre a terra chamuscada, esticaram-se como raízes ao encontro de todas as chamas. Apagaram boa parte do incêndio, evaporando-se em um nevoeiro branco devido ao calor.

Glaudir observou a água escorrer sob os pés do inimigo e tirou a ondori de baixo da camisa, antes que o fogo sumisse por completo e tudo fosse devolvido às sombras da noite. Apenas as chamas das montanhas, inalcançáveis, seguiram luzindo, mas seu brilho era tão débil que não ajudaria muito. Receio dizer que o ivirez não ouviu nenhuma palavra heroica em sua mente que o motivasse a tal ato. Talvez a situação o tenha seduzido, talvez os instintos, talvez a tolice. O que importa é que ele fez. Libertou-se da mão repressora do feiticeiro e correu entre a neblina que se elevava, a lama salpicando em seus pés invisíveis. Apontava Verneti para um único alvo: o coração de Sireyg.

A neblina não dificultou em nada a vista de Glaudir. Graças a ondori, ele enxergava Sireyg claramente. O alvane tinha uma arma, uma espada longa a brilhar com chamas vermelhas. O necromante também era vermelho, mas o seu corpo estava cheio de manchas negras que se arrastavam como vermes em um cadáver. Fumaça o envolvia, dando-lhe forma humana e sussurrando algo incompreensível.

Glaudir atravessou o nevoeiro, sem se importar com as brasas que haviam escapado das águas de Nirener, Verneti sempre apontada para o peito do inimigo. A ondori também mudara o jeito que ele enxergava sua própria espada. Agora, chamas azuis faiscavam na lâmina, liberando um pó de estrelas geladas no ar abafado. Era o contraste perfeito da espada vermelha e causticante de Sireyg.

O necromante mal teve tempo para desviar. Glaudir patinou sobre as águas e enfiou a espada no coração do alvane. Sireyg gritou. A espada vermelha caiu, trovejou ao tocar a terra. O grito fez os paredões da Garganta de Maldok tremerem. Glaudir continuou empurrando Verneti enquanto Sireyg retorcia os braços em desespero, até que um barulho sólido demais o fez puxá-la de volta. Parecia um martelo atingindo uma bigorna. Glaudir não demorou para entender. Não atingira o coração de Sireyg, mas um medalhão metálico que protegia seu peito. Com a força de Verneti, o objeto atravessou as costas nebulosas de Sireyg e cravou-se numa rocha do paredão.

Mesmo atordoado com o ataque, Sireyg golpeou o ivirez com um dos braços. A força foi tanta que Glaudir foi arremessado de volta às margens do rio. Verneti escapou de suas mãos enquanto o rapaz rolava no cascalho molhado. Glaudir quase perdeu os sentidos. Só teve forças para abrir os olhos. Viu Sireyg se aproximar, já com a espada na mão, riscando a terra com a ponta da arma. O poder da ondori já havia cessado, isso era certo, pois o necromante ia na direção do ivirez. Assim, sua forma estava diferente. Ele usava uma armadura, negra, sem nenhum reflexo no metal e com filetes de fumaça saindo das articulações. Os sapatos encouraçados deixavam marcas no chão. Todo o rosto era coberto por uma máscara de ferro que tomava a forma de uma coroa dourada nas partes superiores — a única coisa que reluzia nele. Sireyg não respirava, apenas a espada cortando o chão se fazia ouvir. Ele não era mais uma sombra espectral disforme, era um guerreiro, completamente protegido em sua armadura.

Quando alcançou o ivirez, Sireyg ergueu a espada. Fitou a ondori a cintilar no peito da vítima. Por um instante, ficou admirado, imóvel, só vislumbrando a joia perdida há tanto tempo. Glaudir pensou que a surpresa o faria recuar ou ao menos adiar o ataque, mas Sireyg não se deixou abalar pelos próprios sentimentos. Apontou a espada. Glaudir sentiu a morte na lâmina. Era quente, fumegante como lava.

Envycalma dicílir fronaren!

Uma voz gritou ali perto, confiante, estilhaçou a noite silenciosa.

Um relâmpago ofuscou os olhos do ivirez. Um raio passou na frente de Sireyg, erguendo um muro branco e cheio de fagulhas que separou os dois. Glaudir sentiu os pelos dos braços eriçarem com um calafrio, os olhos lacrimejando com a poeira do relâmpago. Sireyg foi consumido pelo esplendor e logo, logo tudo tornou-se um borrão branco e gelado, as faíscas reluzentes do muro de luz rodopiando ao toque da brisa.

— Venha! — Era Nirener, que puxava o ombro do ivirez. Não passava de uma mancha azul no clarão.

— Espere! — Glaudir grunhiu, escapando das mãos do feiticeiro novamente. Sua voz soou tão baixa que Nirener mal pôde ouvi-lo.

Glaudir encolheu-se enquanto o brilho pálido enfraquecia. Tateou a terra úmida em busca do cabo de Verneti. Mesmo com a vista ofuscada, era possível ver o brilho verde das esmeraldas da arma. Ele segurou-a, puxando-a para si. Arranhou o chão assim como Sireyg e reparou que a lâmina também cortava a luz ao redor.

As faíscas transformaram-se em cinzas geladas, pareciam neve caindo sobre o cascalho. Com a bengala numa mão e a espada na outra, Glaudir voltou para junto de Nirener. O clarão foi sumindo aos poucos, mas a terrível sombra de Sireyg ainda não era vista. Podia ter abandonado o lugar, o que deu esperanças ao ivirez e ao feiticeiro que disparavam entre os paredões da garganta. Seguiram o som da correnteza borbulhante do rio, as rochas passavam ao seu lado como borrões.

Glaudir olhou para trás, exausto devido à fuga. Para piorar, era preciso ter cuidado com as pedras ainda quentes e as crateras do caminho, obras do fogo maldito de Sireyg. Mais atrás, os picos das montanhas estavam escuros, expirando fumaça. Alguma coisa grande voava ali, subia às nuvens. Suas asas se moviam rapidamente para cima e para baixo para ganhar impulso, eram tão magras e negras quanto galhos queimados. Quando estava bem alto, a criatura deu uma rasante e desapareceu no meio da Cordilheira de Andrus.

— Aqui! — Nirener gritou, sua mão livre acenava para alguém. O rosto molhado sorria. Mais à frente, várias pessoas vinham correndo na direção dos dois.

Bardoel chegou primeiro, saltando veloz as pedras e com o arco na mão esquerda. Os olhos relampejavam de raiva quando encarou o feiticeiro.

— Por que abandonou seu turno? — interrogou, a testa franzida.

Por um momento, Nirener imitou a expressão, irritando o príncipe ainda mais. Ficou calado e correu para as margens do rio, como uma criança que foge de uma briga.

— Aonde pensa que vai? — Bardoel berrou.

Elenne apareceu, seguida por Zadur, Daro e Docus. Sorriam por terem encontrado os dois companheiros em segurança, mas não deixaram de notar a face assustada de Glaudir.

— Onde está Hargot? — perguntou Glaudir, preocupado com a ausência do amigo.

— Mais seguro que nós, acredito, mas não é um bom momento para detalhes. Vejam! — respondeu Docus, o dedo apontando para as montanhas.

Mais clarões rubros. Em resposta, as sombras dos viajantes tremeram diante da luz, como se quisessem fugir da ira do inimigo. As nuvens engordaram com o fogo em seu interior, vomitaram raios e bolas flamejantes sobre as montanhas. O vento, um bafo de fumaça quente, trouxe o rugido furioso dos trovões.

— Eu preciso de uma espada! — exclamou Nirener. Daro foi o único a ouvi-lo, todos entretidos com a catástrofe na Garganta de Maldok. Ele entregou Vardon, se afastando do feiticeiro em seguida.

Nirener empurrou lama ao rio com os pés, turvando as águas. Recitou alguns versos em outro idioma e fincou a bengala nas margens. A correnteza parou, os relâmpagos em sua face pintavam-na de vermelho. O feiticeiro não perdeu tempo, começou a bater várias vezes no rio com a parte larga da espada. As águas sujas respingaram em seu rosto, escorreram sobre sua barba escura. Depois, ele segurou a espada e a bengala com a mesma mão e esticou-as na direção do fundo do rio. A água baixou um pouco, afundando-se na terra molhada. Em um segundo, Nirener encolheu-se para pegar um punhado de terra com a mão livre e arremessou-o ali dentro. O Mestre gargalhou com o que veio a seguir.

Pedras brotaram do fundo do rio em meio a blocos de barro e lama. Uniram-se para formar uma ponte, no mesmo nível das águas imóveis.

— Venham se não querem morrer! — Nirener chamou, correndo sobre a ponte escorregadia.

A comitiva não pensou duas vezes e saltou para a passagem um atrás do outro. Os seixos molhados afundavam quando pisados, como se estivessem boiando, e a água afastava um pouco o barro da ponte, assim tinham que avançar com cuidado para não despencarem rio abaixo. Lá atrás, o fumo se expandia através dos paredões da garganta, mas não chegou a tocar as águas, limitando-se a fazê-las tremer. Daro era o último da fila, e pôde sentir a ponte oscilar a seus pés. As pedras começaram a afundar com o calor, como consequência a ponte foi se dissolvendo rapidamente. Daro teve que saltar para alcançar o outro lado do rio. O barro se liquefez antes da correnteza o levar para longe, enquanto a terra da Garganta de Maldok era carbonizada pelas chamas de Sireyg.

Todos voltaram a correr. Uma nuvem cobriu o horizonte, abaixou-se até as mais altas montanhas e ocultou todas as luzes da noite. Rápido como era, Nirener afastou-se dos companheiros, e precisou projetar uma luz com a bengala para guiá-los na escuridão, segurando-a como se segura uma tocha. A luz era fraca, iluminava apenas o antebraço e metade de seu rosto barbudo. Parecia um vaga-lume azul voando cada vez mais distante, cada vez mais fraco.

Zadur se apressou para acompanhar o guia, mas não conseguiu e teve que gritar, ofegante:

— U… riar… ques! U… riar… ques! A… pa… gue!

Nirener ouviu e parou, esperando que o alcançassem: — Então, como andaremos nesse breu? — A voz estava calma, mesmo tendo corrido tanto.

— Não faço ideia, mas não podemos arriscar!

Daro entrou no meio dos dois, os olhos na espada Vardon ainda com Nirener.

— Sigam-me com a luz apagada — ele exclamou. — Vou guiá-los a partir de agora. Eles não podem me ver.

O rapaz esticou os braços e transformou-se em lobo. Deu um rosnado e saltou para frente, disparou silencioso com a pelagem branca cintilando fracamente nas sombras.

— Minha nossa! — gritou Bardoel, assustado. Pegou uma flecha da aljava e armaria o arco se Elenne não houvesse baixado a mão dele.

— Um troca-peles! — ela sorria de orelha a orelha. — Vamos segui-lo, não vamos? Tenho certeza que ele vai nos levar a um lugar maravilhoso!

Ela não hesitou em seguir o animal, bem como Nirener e os ivirezes. Mas Bardoel e Zadur permaneceram parados, confusos ou assustados demais para continuar. Quando olharam para trás, avistaram o incêndio crescente da Garganta de Maldok. Um grito agudo e agonizante escapuliu entre as línguas de fogo.

Agora, muito mais apavorados, resolveram seguir o lobo, escutando a voz de Nirener sorrir baixinho:

— Raio Branco… É um bom nome, Glaudir. Muito apropriado.

Leia o Capítulo 1 de A Estrada dos Heróis aqui.

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Paulo Moreira

Brazilian pharmacist in loved with History, Fantasy and Ecofiction. Author of The Blood of the Goddess. I write about nature in poems and fantasy stories.