Foto em preto e branco do pico de uma montanha coberto por nuvens.
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A Estrada dos Heróis

Capítulo 1 — As Batidas do Ankef

Paulo Moreira
15 min readFeb 4

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Não foi o fim. Foi o começo, infelizmente. Infelizmente porque abandonar a ondori lhe faria fugir da vida. E ele queria fugir, mais que tudo.

Seu sono não foi calmo. O suor o encharcava, fazia-o se debater como um louco. A dor no ombro era incomparável. Toda vez que seu coração pulsava, sentia o braço ser arrancado, dilacerado pelos dentes de alguma fera. E seu coração pulsava tanto… Ele estava ardendo, mas sentia frio. Lava remexia em suas vísceras e saltava pela sua boca. Queimava tudo. Mesmo assim, ele continuava sentindo frio.

Não enxergou nada ao abrir os olhos. Estava tão escuro e a fumaça queimou sua vista. Seus ossos de vidro se partiram, trincavam a cada minuto. Em uma hora, seu esqueleto não passaria de um farelo branco e quente.

E num instante, tudo passou. Seus pesadelos de morte cessaram. O coração nervoso acalmou-se. O calor diminuiu. Agora, era uma pedra de gelo boiando na água, imóvel enquanto a brisa da madrugada o beijava no rosto. Não havia mais dor, só paz. Estava tão calmo que ele podia escutar vozes perdidas ao longe, ecos numa caverna.

— Acorde — sussurrou uma delas.

Uma doce voz feminina.

Glaudir abriu os olhos. Uma luz gelada o ofuscou, queimando sua vista, mas o desejo de saber onde estava o manteve acordado. Não lembrava-se de nada. Sentia a cabeça oca, o corpo, vazio. A luz branca vinha de uma janela aberta, ali o vento sussurrava palavras estranhas. Glaudir pôs as mãos sobre os olhos e foi andando na sua direção. Começava a entender o murmúrio da brisa.

— Venha. Preciso mostrar-lhe uma coisa.

Glaudir segurou as bordas da janela e sentiu-se tremer de novo com o frio que as molhava. Não avistou ninguém, todavia, a luz branca passeava para dentro do cômodo como gente. Havia uma sombra bem próximo de Glaudir. Ela o encarava. Tinha cabelos dourados que cintilavam como pó, mas as costas e a cintura resplandeciam azuis. Glaudir a conhecia, no entanto, não recordava seu nome. Não havia mais ninguém no cômodo além dos dois.

O ivirez voltou o rosto à janela. A luz gelada ao seu redor nascia da fina lua minguante no alto do céu. Logo quando a percebeu, tudo apagou-se, apenas as estrelas azuis continuaram acesas. Glaudir viu-se à beira de uma torre. Desnorteado, quase caiu.

— Tenha cuidado!

Glaudir respirou fundo. Estava no topo de alguma montanha, nuvens em formato de águias inundavam a parte inferior da torre. Escadarias de pedra serpenteavam os montes à sua frente. Uma ponte fixa no ar unia a torre a um outro edifício, cheio de colunas de apoio.

— O que quer ver?

Glaudir não precisou pensar para responder.

— O que me espera.

Tão rápido quanto sumira, a luz branca ressurgiu no breu e empurrou o ivirez para longe, para muito longe. O lugar era quente e abafado. Árvores carbonizadas expiravam fumaça ao céu negro enquanto um vapor se adensava sobre a terra. Voando no meio das estrelas, um pássaro terrível descia em rasante com as garras abertas para um ataque. Chamas vermelhas rastejavam no chão para queimar completamente as últimas árvores com vida. O cheiro de fumaça rasgava os pulmões como areia.

Logo em seguida, um brilho chamou a atenção de Glaudir. Vinha de uma cachoeira reluzindo entre as montanhas. Escutou cascos. Cavaleiros cavalgavam em disparada, as espadas erguidas gotejavam sangue nas águas do rio. Alguém começou a chorar, pedia ajuda, mas estava oculto nas sombras pesadas das montanhas.

— Isso você não pode ver, ainda — exclamou o vento frio.

Glaudir avistou muralhas. Sobre elas, corriam uma multidão de guerreiros armados para se reunirem mais abaixo, na planície defronte aos muros. Eram tantos que pareciam um formigueiro. Passos tremeram o solo. Mais à frente, sombras gigantescas se aproximavam. Cavalos começaram a relinchar, loucos de desespero.

— O fim de uma era.

Uma lança cortou o céu, acertou o velho guerreiro que a arremessara. Cavaleiros velozes foram chegando, seus estandartes azuis tremulavam esperançosos sobre o ar vermelho.

— Mas… Não é isso que quero ver. A ondori. Eu quero… — Glaudir não pôde continuar. Uma nova voz soou, muito mais nítida que a voz feminina do vento. Um raio cortou a visão, partindo-a em duas, e se expandia como uma bolha. Glaudir se afastou para não ser engolido.

— Acorde! — ressoou a voz, vibrante, rígida.

Sua última visão foi um homem encarando-o, seu corpo era tão grande que ocupava todo o cômodo. Ele sorria.

Glaudir despencou no sono outra vez. Dessa vez, não teve mais nenhum sonho, e mais nenhuma dor.

Sentia-se bastante forte quando acordou. Docus estava sentado ao lado da janela, a luz branca clareava ainda mais seus cabelos. O vento rugia lá fora, e estava tão frio que Glaudir se remexeu na cama.

— A janela… Pode fechar?

A voz estava tão frágil que Glaudir achou que não seria ouvido. Mas Docus saltou da cadeira, sorridente, e abraçou o companheiro como se houvessem passado anos sem se verem. As costas doeram, no entanto, não eram como as dores dos pesadelos, Glaudir podia resistir.

— Ficamos muito preocupados — ele disse, deixando-o respirar. Glaudir sentou-se na cama macia, e tentou lembrar que lugar era aquele. As paredes eram enfeitadas com várias estatuetas, algumas portando lâmpadas.

— O que houve?

— Algo horrível — exclamou Docus. Glaudir não deixou de notar que o issacerez continuava armado. — Se lembra da Mata Negra?

— Mata Negra… — Glaudir conhecia aquele nome, mas só tinha lembranças de vozes perdidas e imagens escuras. Parecia que sua cabeça havia sido chocalhada.

Docus sentou-se na cama, preocupado. Os olhos miravam o peito do amigo.

— Qual a última coisa que se lembra?

Glaudir virou o corpo para ver melhor a janela. Avistou o céu azul resplandecendo no outro lado. Algumas águias planavam ao longe e começaram a distraí-lo.

— Por favor, tente responder — insistiu Docus. Seus olhos temerosos constrangeram Glaudir.

— Abidel disse para irmos para a Mata Negra, sozinhos, não sei o porquê. — Sentiu a ondori e percebeu que era para ela que os olhos de Docus se dirigiam.

Um novo sorriso explodiu no rosto do amigo, tão brilhante quanto fogos de artifício.

— Veridor disse que você iria se lembrar com o tempo. E que eu não devia perturbá-lo quando acordasse. Vou deixá-lo sozinho agora. Descanse, vai ser melhor para você. Tente não fazer nenhum esforço, por favor.

Docus fechou a porta ao sair.

Com a mente entregue às névoas, Glaudir observou o quarto tentando lembrar de como havia chegado ali. O vento frio agitava as cortinas brancas da janela. Ao lado da porta fechada, um armário exibia jarros de cristal coloridos, com cenas distintas gravadas em sua superfície. Quase não se ouvia nada. O grito das águias lá fora de vez em quando superavam o rugido do vento, e batidas repetidas soavam baixinho na janela. Tais batidas chamaram a atenção do ivirez. Não possuíam um ritmo definido, mas traziam paz a seu coração.

Glaudir levantou-se da cama e tropeçou por causa da tontura. O chão de pedra sob seus pés descalços estava mais gelado que o vento. As cortinas o chamaram, se esticando em sua direção. O ivirez segurou as bordas da janela e avistou o objeto misterioso que batia. Sete tubos ocos de madeira haviam sido pendurados em cima da janela, unidos uns aos outros por um fio de prata. Quando o vento os tocava, eles se chocavam, e cada um produzia uma batida levemente diferente. Como também eram ocos, assobiavam baixinho, enquanto sete correntes nas pontas dos palitos tilintavam quase inaudíveis.

Ankef… Onde há ankef, há alvanes!

Glaucor lhe contara sobre aqueles objetos sonoros quando o filho ainda era criança. O ankef era pendurado nas portas e janelas dos alvanes para impedir que os espíritos maus entrassem, um ensinamento deixado pelos antigos verith. Uma pessoa qualquer trataria aqueles pauzinhos como apenas um objeto de decoração, mas os alvanes acreditavam que produziam um som horrível capaz de assustar criaturas indesejadas.

Embora o ankef houvesse lhe acalmado segundos atrás, Glaudir não pôde conter o medo ao reparar o cenário à sua frente. Uma ponte comprida unia a montanha onde ele estava com outra mais ao longe. Nas beiradas da ponte, estátuas brancas erguiam armas e orbes de lâmpadas, eram mais altas que um humano e sumiam de vez em quando atrás das nuvens geladas.

Glaudir afastou-se da janela. O chão começou a se mover e seus pés foram ficando mais escorregadios. Havia acordado de um pesadelo para entrar em outro? Sentiu as nuvens puxando-o em direção ao abismo. Decidiu não olhar mais para a ponte para que a tontura diminuísse.

— Onde estou, afinal?

Logo o vento forte trouxe um uivo terrível lá de fora. Glaudir não ousou se aproximar da janela, mas deu uma olhada rápida pelo canto do olho. Um lobo vinha correndo sobre o parapeito da ponte, saltava alto o suficiente para cruzá-la em poucos segundos, e sua pelagem era tão branca que confundia-se nas nuvens ondulantes. Assim que saiu da ponte, deu um novo salto e transformou-se em um rapaz vestido com trajes vermelhos.

— Fiquei louco, é isso!

Glaudir trancou a janela de vez e caiu na cama. Dormiria de novo, talvez assim sonhasse com coisas mais reais.

depois de um tempo repararia que aquele lugar não era nem um pouco perigoso como pensara. Aquele lugar era Ederon, o refúgio dos alvanes na Cordilheira de Andrus.

Alguns diziam que Ederon era uma estalagem gigantesca, ou uma casa-amiga escondida nas nuvens. Para Glaudir, parecia mais um palácio cravado nas rochas das montanhas, repleto de escadarias dentro e fora de suas paredes. As abóbadas dos salões resplandeciam perante a luz dos astros celestes, quase escondidas nos flancos dos montes. Para alcançar esses salões, era preciso enfrentar o vento forte e percorrer os degraus de pedra com cuidado, por onde despreocupadamente passeavam os alvanes. Arcos levavam a outras montanhas, ou ao interior delas, sendo a ponte branca das estátuas a mais comprida. Era ela que unia a Estalagem ao Salão da Lareira.

Glaudir podia ver o salão dali de seu quarto, com os vitrais coloridos flamejando sobre o portão gigantesco. Ao lado do edifício, escadarias davam voltas em torno do monte, sempre subindo, para acabarem em um precipício rochoso, onde nem as nuvens ousavam passar. Era o ponto mais alto de Ederon, no qual construíram um novo salão, tão belo e brilhante que enchiam de lágrimas os olhos dos alvanes: a Abóbada Azul.

Os alvanes costumavam caminhar pelos degraus observando o curioso cenário em volta. Eram altos e brancos como as nuvens que planavam por ali, com vestidos vermelhos tão longos que alcançavam os pés. Os rapazes escondiam as cabeças nas sombras do capuz, e seus olhos mal eram vistos, mas as mulheres faziam questão de mostrar os cabelos negros, ornados com minúsculas joias brilhantes. As sandálias de pano sussurravam na pedra durante os seus passeios.

A música sempre acompanhava os alvanes de Ederon; reuniam-se em grupo de cinco ou oito, ocultavam os rostos nos capuzes e começavam seu passeio unidos em uma ou duas canções. Quando sós, aproveitavam para assobiar e cantarolar baixinho, ou treinavam com flauta, lira e alaúde. As moças cantavam sozinhas, e sua voz sempre era mais bela que a dos rapazes. Algumas ficavam na ponte, ao lado das estátuas, tentando avistar o chão longínquo lá embaixo.

Os alvanes são um povo muito sábio e poderoso. Em Ederon, havia uma biblioteca livre para qualquer um que desejasse obter conhecimento sobre Aragus. Era guardada por colunas cilíndricas, iluminada por estátuas segurando lamparinas. Veridor, o líder de Ederon, tinha um apreço enorme por aqueles registros, e buscava preservá-los o máximo que pudesse. Assim, as lamparinas eram postas dentro de esferas de vidro, abertas em cima para não sufocar a chama, o que diminuía as chances de ocorrer algum incêndio. Além disso, os nomes de todos que entravam e saíam eram anotados diante do olhar apavorante de um guarda e sua espada.

A noite, com sua frágil lua minguante, trouxe uma neblina cinzenta para os pés das montanhas. Parecia que as torres e salões estavam flutuando sobre as nuvens. Em Ederon, Glaudir sentia-se mais próximo das estrelas, mas isso não era uma coisa boa.

Naquele dia, apenas por Hargot e Docus o visitaram, e eles sempre recomendavam que permanecesse no quarto. Exausto e dolorido, Glaudir jamais pensaria em discordar. Sua curiosidade era sempre esmagada pelo medo de altura, e ele não desejava fazer nada além de comer e dormir.

Quando seus companheiros vinham, narravam uma história fantástica sobre veneno e sofrimento. Foi aí que o ivirez recordou-se do sumiço de Abidel e da Mata Negra. Lembrou que conhecia o lobo da ponte; era Daro, o rapaz enviado por Sil Barok para levá-los até um tal de Nirener, que era de confiança.

— Como escapei do nidrog? — perguntou, com a boca cheia de bolinhos.

O frio entrava pela janela aberta, dando vida às cortinas e voz ao ankef. Docus encolheu-se em sua cadeira e olhou para Hargot em pé ao lado da cama.

— É uma história meio longa — Hargot respondeu, puxando uma cadeira para sentar-se.

— Já dormi tanto que posso passar a noite inteira escutando.

Hargot espiou as estatuetas do quarto. As chamas das lâmpadas tremiam, criando sombras distorcidas na parede.

— Nós corríamos em disparada pela estrada velha. Como sempre, Daro nos guiava. Ainda não sabíamos que você havia sumido. A floresta estava tão escura que tudo se transformava num borrão preto. Contávamos com nossos instintos para não nos perdermos. Quase não conseguimos alcançar Daro, pois ele era muito rápido, e mesmo sem estar na forma de lobo, saltava os barrancos da estrada com velocidade anormal. Os únicos locais iluminados eram as clareiras, com sua típica luz cinzenta, mas temíamos entrar em uma, já que o inimigo poderia nos encontrar facilmente no claro. A minha espada não ajudava. Eu tinha medo de ser achado por Yeranrog devido à luz azul que ela emitia. Daro mantinha Vardon nas mãos, e Docus corria com o arco e uma flecha-safira, então arrisquei colocá-la de volta na bainha e passei a contar com a proteção deles. Não sabia porque ela estava brilhando se não havia nenhum ser mágico por perto. De novo, foi o issacerez quem percebeu sua ausência, Glaudir, assim como na Floresta das Grandes Árvores quando você estava sob o encanto do salgueiro-cadáver.

Glaudir arregalou os olhos para Docus. O companheiro só sorriu em resposta. Permaneceu calado.

Hargot prosseguiu: — Esperamos um pouco, aguardando a sua chegada, mas você não veio. Voltamos o percurso. Agora eu deixava Deradol em minhas mãos, pronto para qualquer coisa. Percebemos que estava silencioso demais, isso nos desesperou. Daro ficou assustado ao ver que todas as mariposas haviam sumido das clareiras, como se aquilo fosse um sinal do inimigo. Ele me passou Vardon e correu para fora da estrada, transformado em lobo, uivando e rosnando em busca de Apressárvore ou outro bawian que estivesse ali nas bandas.

Glaudir parou de comer. Tentou lembrar o que havia acontecido, mas tudo que vinha à sua mente eram imagens doloridas e surreais.

— Foi aí que ouvimos seu grito — Docus começou. Hargot levantou-se para fechar a janela. — Você gritou por socorro, pediu ajuda. Tememos o pior. Daro não estava conosco, então estávamos em desvantagem. Corremos na direção do grito e demos de cara com uma região fétida, abafada. A terrível serpente ficou sibilando ao nosso redor. Mesmo assim, não a encontramos. Ficamos parados, um ao lado do outro, confiando em nossa audição. Ouvíamos chocalhadas, folhas caindo, tão pertos de nós que quase desmaiamos de pavor. Então, Hargot gritou para que eu atirasse. Mas para onde? Eu não fazia ideia alguma. Quando o brilho de Deradol reluziu nos olhos dele, reparei que estavam olhando para cima das árvores. De súbito, atirei. Não sabia se acertaria a cobra pendurada entre as folhagens, mas talvez eu tenha acertado no fim das contas, porque ela gritou, e ouvimos algo despencando lá em cima. Saímos do caminho, achando que era um tronco ou o próprio nidrog. Mas não era um tronco, nem Yeranrog. Era você.

Hargot voltou a sentar-se na cadeira, sorrindo de orelha a orelha.

— E aí, Daro chegou no momento exato. Trazia Apressárvore consigo, e o gigante lhe segurou no ar. A criatura não fugiu. Ela nos atacou, mas Apressárvore conseguiu atrasá-lo enquanto fugíamos. Carregamos seu corpo gordo nas costas. Foi difícil. Para nossa sorte, o sol estava para nascer, e Yeranrog voltou rastejando para sua toca, onde quer que ela fosse. Deitamos você no chão. Estava febril, suava muito, tremia com calafrios que não passavam e gemia de dor. Foi uma cena horrível.

— Então por que sorriu? — reclamou Glaudir, magoado.

— Porque você foi salvo. E isso me dá enorme alegria, agora.

Ele escondeu o sorriso e voltou a olhar as estatuetas. — Sabe, foi horrível, horrível mesmo. Você vomitava algo amarelo, quando não era sangue. Nos deixou apavorados. Ficava se debatendo, fechava as mãos com tanta força que suas unhas feriam as suas mãos. Achávamos que você estava inconsciente, e outras vezes parecia saber de tudo que acontecia ao seu redor. Sempre que tentávamos olhar o seu ferimento, você virava o rosto e gritava de dor. Era um veneno traiçoeiro, parecia que nunca ia passar. Passamos a desejar… bem, sabe… — Hargot ficou quieto, a cabeça baixa.

Glaudir tocou as feridas no ombro. Mesmo envolvidas por uma faixa branca, elas ainda ardiam.

— O que desejaram? — Massageou o ombro para diminuir a dor.

— Pensamos que sua missão havia acabado, ou que ao menos não seria capaz de concluí-la. Choramos muito. O veneno era cruel demais, não nos dava nenhuma esperança de salvação. Você se retorcia como se estivesse deitado numa cama de fogo. Pensamos em pegar a ondori, deixá-lo de fora da missão.

— Isso não responde a minha pergunta.

Hargot e Docus se entreolharam. Ficaram em silêncio, sua respiração sobrepondo as batidas do ankef.

— Somos mais que companheiros de viagem — Glaudir insistiu. — Somos amigos agora, não somos? Podem me contar qualquer coisa. Eu vou entender.

Hargot tossiu, limpando a garganta.

— Desejamos… bem, desejamos a sua morte. Tentamos de tudo, de tudo mesmo, mas não podíamos curá-lo. Nada podia, nada que estivesse ao nosso alcance. — Pela primeira vez na viagem, Hargot começou a soluçar. — Você sofria demais. Cuspia sangue e se revirava no chão, tremendo de dor. Não queríamos a sua morte, não é isso, mas se acontecesse, talvez fosse o melhor. Desculpe-me, mas desejei que o veneno fosse forte o suficiente para matá-lo de uma vez, cessando seu sofrimento. Perdoe-me por ter lhe desejado essa maldição. Eu estava muito abalado. Não conseguia pensar direito. — Hargot gaguejou, o rosto entregue às lágrimas. Tentava disfarçar, sorrindo, mas as lembranças eram tão pesadas que pendiam seu rosto. O Guerreiro Iluminado, corajoso, hábil com a espada, agora se dissolvia numa criança perdida. Glaudir não suportou ver aquilo.

— Claro que lhe perdoo, meu amigo. — E sorriu também, constrangido com tamanha emoção. — Eu devia ter sido mais cuidadoso, eu acho.

Como Hargot não conseguiria descrever mais coisa, Docus deu seguimento à narrativa: — Felizmente, alcançamos a beira da floresta. A Estrada passava bem à nossa frente, e Nirener estava lá, sentado nos aguardando. Ao perceber que tínhamos um ferido, correu ao nosso encontro. Ele sabia como curá-lo. É um homem muito sábio, e embora seja um Mestre da Magia, não se parece nem um pouco com Abidel. Não tinha como curá-lo ali, mas diminuiu o efeito do veneno com umas ervas que levara de Ederon. Ele as tinha consigo pois temia algum incidente. Depois disso, você se acalmou e entrou em um sono profundo. Pensamos que já estava curado, mas não estava.

“Nirener só pôde curá-lo realmente com o auxílio de Veridor, pois o alvane cultiva uma árvore mística capaz de curar qualquer doença. Com a sua esposa e seus dois filhos, o carregou até o pico da montanha, onde está a planta. Nirener foi atrás. O orvalho que brota dos galhos retorcidos da árvore goteja em uma banheira, e foi nessa banheira que lhe puseram para repousar por um tempo. Assim, você foi curado do veneno de Yeranrog. E agora, você está bem.”

— Para o bem de todos nós — acrescentou Hargot.

Glaudir suspirou, reparando as estrelas esculpidas no teto do quarto. Cheirou o ar frio de Ederon, lembrou-se de Abidel. “Onde será que ele está agora?” Não queria tocar no assunto, então, mudou de conversa: — E Nirener e Veridor, onde estão? Sinto-me obrigado a agradecê-los.

— Esses dois estão por aí — Docus resmungou, ficando em pé. — Vai encontrá-los facilmente. Não é muito difícil saber quem é Nirener, ele é um ponto azul num mar vermelho. Disseram que ele fica passeando por Ederon de vez em quando. Ao dia, observa o além. À noite, as estrelas.

— Mas é hora de você voltar a dormir! — interrompeu Hargot. — Tenha uma boa noite de sono, caro amigo. Você precisa de uma.

Eles o deixaram logo em seguida, fechando a porta.

A brisa da Cordilheira de Andrus fez Glaudir encolher-se na cama. Apenas com o rosto fora dos lençóis, ficou olhando de novo as estrelinhas no teto. Pareciam alinhadas. Talvez formassem alguma constelação, mas o ivirez não conseguiu saber qual. As janelas batiam de vez em quando, tamanha a força do vento das montanhas, e ao mesmo tempo, o ankef estalava e assobiava, como se dissesse: “Não há nada a temer em Ederon, aventureiro. Aqui você pode descansar.” Além disso, os alvanes cantavam lá fora.

As estatuetas também estavam com frio, tremiam à luz das lâmpadas, e, conforme o óleo ia acabando, aparentavam ganhar vida. Nenhuma luz conseguiu sobreviver por toda a noite. O quarto ficou entregue às sombras, ao frio e ao silêncio. Mas nada disso podia lhe fazer mal, não com a música do ankef e a voz dos alvanes.

Estava tudo bem mesmo, finalmente estava.

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Paulo Moreira

Brazilian pharmacist in loved with History, Fantasy and Ecofiction. Author of The Blood of the Goddess. I write about nature in poems and fantasy stories.