A Cabeça do Padre Honório, por Paulo Moreira

Paulo Moreira
11 min readDec 13, 2020

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A fazenda Novo Cristo era motivo de orgulho e fortuna para a família Oliveira, embora muita gente teimasse em dizer que só um pacto com o diabo podia ter trazido tanto dinheiro a eles. Claro que nenhum dos empregados se atrevia a falar isso, não na frente dos três filhos do seu Miguel, mas de vez em quando alguém era pego cochichando no meio da plantação de algodão. Muitos já haviam sido chutados para fora da fazenda com um olho roxo ou um nariz quebrado de brinde — o olho roxo era a especialidade do Zé Carlos, o nariz quebrado, do Tobias. O dr. Henrique só despedia mesmo, mas sempre fazia questão de chamar os irmãos para a briga.

Assim, não estranharam quando o seu Miguel ficou amuado de um dia para o outro, sem querer falar com ninguém. Passou dois dias com os lábios lacrados, dando voltas na plantação como se procurasse alguma coisa perdida. Os filhos só perceberam a seriedade da mudança quando o seu Miguel deixou de comer. Procuraram o cara que tinha sido macho o suficiente para mencionar a porcaria do pacto de novo. Dessa vez, não foi ninguém, nem mesmo as fuxiqueiras que tiravam as sementes do algodão.

Foi na noite do terceiro dia que o seu Miguel chamou os três filhos para uma conversa em particular. O dr. Henrique levou umas vitaminas, preocupado com a cor do pai, mas foi duramente repreendido. Pelo menos, o ânimo do velho havia voltado.

— Queria só contar isso quando estivesse mesmo pra bater as botas… Mas sei lá, acho que já estou sentindo o bafo da dona morte no meu cangote. Espero que contar tudo logo alivie essa amargura no meu coração. E vou precisar de vocês também, pra um trabalho macabro por demais. Então, fiquem de bico fechado e abram os ouvidos. Não venham me entupir com comida e remédio, que eu só vou ter paz mesmo quando acabar com a raça daquele azulão que está rondando a minha fazenda.

“Todo mundo diz que eu tive que me meter com o capeta pra conseguir o que tenho. Nem eu sei se foi um diabo ou um anjo mesmo que me deu o dinheiro. O que importava é que era dinheiro, três contos de réis, um pra cada. Quando é que a gente ia ter uma chance dessas de novo?”

“Éramos eu, Zé Pedro e Azulão. Eu era o mais novo, vinte e quatro anos, mas já estava casado com Rosemara. Os outros dois eram solteiros ainda, porque Zé Pedro quase não se metia com mulher, e Azulão toda semana arrumava uma nova. Era aquele olhar de estrangeiro dele, amolecia toda mocinha que passava na vila. E ele era o mais idiota no fim das contas. Foi ele quem começou a brincadeira, sempre metido a macho.”

“A gente ia pegar água toda manhã nas cisternas do padre Honório, lá no casarão dele, bem em cima da ladeira do Boi Morto. Azulão ficou atrasando o tempo inteiro, acho que já planejava tudo, sei lá se queria se vingar de alguma coisa. E aí, a gente só conseguiu ir de tardezinha.”

“Vocês já devem ter ouvido falar daquele casarão mal-assombrado. Só o padre Honório tinha morado ali, com os seus bolsos cheios de dinheiro, mas já tinha partido dessa há muito tempo, e não pra melhor. É aquela velha história. Cortejou a filha mais nova do barão, o barão não gostou nada disso, aí cortou a goela do padre de orelha a orelha. Acontece que, lá no além, todos estavam meio indecisos sobre o destino da alma do coitado. O diabo ficava puxando ele pra baixo, e os anjos lá pra cima. No fim, ele acabou ficando na terra mesmo pra não dar nenhum problema. Todo mundo da vila sabia disso e só pegava água de dia. Ninguém tinha coragem de subir a ladeira do Boi Morto à noite.”

“Mas Azulão era um idiota, daqueles que fazem raiva, sabe. Assim que Zé Pedro começou a dizer que as pessoas ouviam coisas estranhas ali, Azulão ficou aperreando ele, chamando de frouxo, frouxo. Eu também tenho culpa no cartório, me deixei levar pelas brincadeiras de Azulão e instiguei o Zé Pedro a passar uma noite naquela casa mal-assombrada. Zé Pedro aceitou o desafio, e eu e Azulão voltamos para casa com os galões d’água. Me senti pesado logo que a noite caiu, imaginei as cadeiras se mexendo, os pratos se quebrando, mas também não quis voltar atrás no desafio, então fiquei calado.”

“Zé Pedro voltou na manhã do outro dia. A gente estava esperando na casa da mãe dele, mas ele não trocou nenhuma palavra sequer conosco. Se enfurnou no quarto como se a gente não existisse e ficou lá dentro por dois dias inteiros. A mãe disse que ele não comia e que ficava com febre toda noite. Ficamos preocupados, mas ela não deixou que a gente entrasse mais na casa pra falar com ele. Já devia suspeitar de alguma coisa. Zé Pedro nunca passava a noite fora.”

“No terceiro dia, eu estava armando uma arapuca quando vi Zé Pedro e Azulão passeando no meio do mato. Era quase meio-dia, e fiquei com raiva ainda mais de Azulão por ter tirado o cabra doente da sombra pra torrar num sol daqueles. Eu fui pronto pra brigar com Azulão, mas ele disse que era Zé Pedro que estava me procurando, que o amigo tinha uma proposta que eu não podia recusar. Eu não aceitaria aquele negócio de jeito nenhum, se Zé não tivesse dito aquela bendita frase:”

“ — Três contos de réis, um pra cada. — O jeito dele falar era diferente, tinha uma calma estranha como se estivesse em paz com tudo. Não era essa a voz do compadre Zé Pedro. Claro que a gente ignorou, se sentindo perdoados pela nossa criancice, e fomos pra casa pegar a pá e a enxada. Quis levar a espingarda de pai, mas agora foi a vez de Azulão me importunar com a história de frouxo, aí deixei ela. Zé Pedro pediu o martelo e uns pregos, sei lá pra que, mas Azulão não disse nada sobre isso, como se qualquer coisa que dissesse pudesse tirar o um réis que lhe cabia.”

“Fomos direto pro riacho que passa na ladeira do Boi Morto e seguimos nele. Nossos pés pesavam quanto mais a gente avançava. A beirada era cheia de sodoro e macambira, aí a gente não podia sair da areia. Era um bom lugar pra o padre ter escondido o dinheiro, isso não dava pra negar.”

“Quando chegamos no destino, Zé Pedro se jogou no chão como se nunca tivesse andado naquelas bandas. Ficou olhando uma serra ali ao lado. Eu me benzi quando reparei que ele espiava o casarão. E me benzi de novo quando suspeitei que ele estava esperando o padre vir pra nos dizer onde cavar.”

“Foi a única vez que os santos ouviram minhas preces. O padre não veio, mas Zé Pedro apontou para duas imburanas bem na beira do riacho. Elas quase se tocavam e não tinham nem uma folha sequer, mas estavam vivas porque a gente escutava os zunzunzum de jandaíras dentro do tronco.”

“Como eu tinha levado fumo, fiquei cavando com a fumaça em meu rosto e o olhar invejoso do Azulão nas minhas costas. Só passei meia hora com a enxada quando senti as mãos arderem. Estavam em carne viva, os calos estourando de sangue. Azulão riu, tomou meu fumo e meu lugar. Não passou muito tempo e as suas mãos começaram a queimar também. Bruto como ele era, continuou cavando. As abelhas ficavam se prendendo em seu cabelo, entrando nos ouvidos. Mas ele só desistiu mesmo quando os dedos endureceram de tanta dor.”

“Discutimos quem iria cavar agora. Zé Pedro tinha passado a tarde inteira na sombra das imburanas, então demos a enxada pra ele. Só que o cabra não fez nem questão de segurar, saiu andando pro meio do mato com aquela paz absurda no rosto. Disse que ia mijar. Combinamos de cavar eu e Azulão ao mesmo tempo depois de o pobre descansar, ele com a pá e eu com a enxada.”

“O buraco ficou impregnado com o nosso fumo, e eu juro que as jandaíras fugiram das imburanas com medo de fogo. Aí, de repente, uma catinga começou a subir dos nossos pés. Por causa da fumaça, a gente conseguiu ignorar por um tempo, mas depois não deu mais pra aguentar, e a gente pulou do buraco quase botando as tripas pra fora. Era merda de porco, o buraco estava cheio de merda de porco!”

“Zé Pedro voltou no mesmo momento. Do nada, senti uma repulsa que não pude esconder. Não sei se foi o sol baixo ou a calça toda mijada do Zé Pedro. Me benzi e cuspi o cigarro no chão. Não ia continuar cavando aquela droga, não à noite com meu compadre estranho daquele jeito, o casarão nos espiando na serra e a maldita catinga de merda no buraco. Deixei tudo com Azulão e fui me embora. Claro que ele ficou mangando:”

“ — Frouxo! Frouxo! Nunca achei que Zé Pedro seria mais macho que tu.”

“Fiquei me queimando de ódio, tanto ódio que tive vontade de enterrar ele vivo naquele buraco. Que ficasse com os seus benditos contos de réis! Eu ia pra casa jantar com minha mulher e tentar esquecer aqueles dois idiotas.”

“Não andei muito até que o sol sumisse e a noite me cercasse. Fiquei cego, sem saber pra onde ir. A areia ficava me puxando pra baixo. Perdi as contas de quantas vezes eu me benzi, que rezas eu rezei, e nada me tirava aquele cegueira. Os dedos do demônio arranhavam minhas pernas, me afundavam direto pro inferno. Eles ficavam correndo ao redor de mim, rindo e me cutucando com alguma coisa pontuda.”

“Mas desapareceram quando pedi misericórdia a Nossa Senhora. Uma estrela relampejou atrás de mim, lá onde eu tinha deixado Azulão. Na hora, eu achei que tinha sido Nossa Senhora quem me mostrou, mas depois eu soube que ela não ia me ajudar. Eu não merecia ajuda de nenhum santo. Todo aflito, corri para a luz e procurei os compadres. A estrela não passava de um lampião aceso em baixo das imburanas, do lado do buraco. Eu não tinha levado ele. Nenhum de nós tinha.”

“A catinga de merda tinha piorado, mas eu senti alguma coisa mais, um cheiro frio de ferro. Farejei e achei Azulão deitado de barriga pra baixo, sem cabeça. Tinha sangue em todo canto, escorria do pescoço e entrava no buraco fedido. Procurei em vão a cabeça dele. A luz era fraca demais e o mato era um borrão de sombra.”

“Aí alguém falou comigo, e a voz era de Azulão. Vinha de dois brilhos azuis, bem no meio do escuro:”

“ — Se esconde, cabra, que ela tá vindo!”

“Era a cabeça dele. Eu vi quando sua sombra rolou para debaixo de um xique-xique. Também me escondi, de cócoras atrás de uma pedra, e fiquei espiando. Queria ir me embora, mas eu precisava saber o que tinha acontecido com Zé Pedro.”

“Aí, ele apareceu. Carregava alguma coisa brilhante. Devia ter pego no buraco, porque as mãos estavam meladas de terra, e ido lavar o negócio em algum olho d’água. Ele andava tropeçando igual a um bêbado. Quando levantou a coisa pra mais perto do rosto, eu vi o que era. Uma caveira, branca como a lua. E ele a beijou, beijou sem nenhum pudor os dentes acabados do padre Honório.”

“Fiz o sinal da cruz e me apertei contra a pedra. Zé Pedro se abaixou para puxar o corpo de Azulão. Tentou encaixar a caveira no pescoço do compadre, lambuzando as mãos de sangue. Começou a martelar. O padre Honório de vez em quando brigava:”

“ — Assim não, aí não! Desse jeito, eu não viro o pescoço.”

“Eu tinha que fazer alguma coisa, mesmo me tremendo de medo. Então, logo que o padre se levantou e abraçou, com o corpo do Azulão, a mulher, no corpo do Zé Pedro, botei forças nas pernas e saltei em cima deles. Os dois caíram no buraco. A caveira se desprendeu, soltando palavrões que nem eu sabia.”

“Rápido como um preá, roubei o lampião e disparei no meio das brenhas, sem me importar com as macambiras. Azulão gritou:”

“ — Não me deixa aqui não, seu frouxo!”

“Acham que eu voltei? Mandei ele se danar, isso sim. Cheguei em casa com as calças todas rasgadas e as pernas sangrando, mas não consegui abrir a boca pra Rosemara. Não preguei os olhos a noite inteira. Fiquei rezando pra o sol aparecer logo.”

“Quando amanheceu, não tomei café, nada entrava. Tinha uma angústia no meu peito. Eles eram meus amigos. Por que eu os deixei pra trás? Aí, quando o sol foi esquentando, a angústia virou raiva e voltou a me encher por dentro. Tive raiva do maldito do Zé Pedro, de mim, até de Rosemara que ficava me perguntando toda hora o que aconteceu. E mais raiva ainda do Azulão com suas ideias bestas de macho.”

“Peguei a espingarda de pai e me meti nas brenhas de novo. Era de dia e eu estava armado agora. Não importava que assombração aparecesse, ia receber chumbo no meio dos olhos.”

“Quando cheguei nas duas imburanas, não tinha ninguém lá, nem Zé Pedro, nem o corpo de Azulão, imagine a cabeça. Nada. Dei uma espiada pra dentro do buraco, o dedo no gatilho, pronto pra fuzilar toda aquela terra maldita. Não tinha caveira nenhuma. Mas tinha dinheiro. Dois contos de réis.”

Quando o relato acabou, os filhos do seu Miguel saíram para respirar o ar frio da noite. As estrelas piscavam nervosas sobre as sombras da plantação de algodão, e os postes coloriam a estrada com um amarelo cadavérico. Tobias vestia uma camiseta, então cruzou os braços para esquentar as mãos.

— Não sei se tô a fim de escutar mais coisa. Ele tá doente, não tá, Rique?

O dr. Henrique sentou-se no batente da porta, sua testa brilhava amarela como as luzes. Enfiou a mão no bolso da camisa, mas não tinha nenhum cigarro ali dentro.

— Ele é velho. A cabeça dele deve estar confusa de tanto ficar escutando o povo cochichar. E também está sem comer há um tempo.

Tobias olhou para a moto de Zé Carlos encostada no poste mais próximo.

— Bora pra cidade? Vai ter festa do time hoje.

Zé Carlos não respondeu, respirou fundo e coçou o nariz.

— Não faz sentido, né? Tem coisa que não se encaixa. Deve tá doente.

O doutor uniu as mãos e começou a estalar os dedos, um por um.

— Não faz mesmo. Como ela cortou sem faca nem nada? De onde veio o lampião?

— Absurdo. — concordou Zé Carlos. Voltou o rosto para a moto. Uma sombra cruzou a estrada, talvez um gato perdido. — O que vamos fazer, então?

Henrique levantou-se e passou a espiar a plantação.

— A gente vai caçar o tal Azulão, mas só se pai comer e tomar as vitaminas. Ele precisa ficar forte pra caçada, não é? Só de colocar alguma coisa na barriga, o juízo dele volta. Vou tentar dar um remédio pra ele dormir também. Uma boa noite de sono resolve tudo.

Zé Carlos coçou o nariz outra vez. Sentiu-o gelado.

— Dois contos de réis… Podia ter deixado o resto, né? Aí não teria nenhum problema.

Fez sinal para Tobias e os dois se despediram.

O outro permaneceu ali por um tempo, entretido com as sombras enquanto o farol da moto deslizava na estrada de terra. Dois olhos azuis o observavam imóveis no meio da plantação. Não metiam medo, mas podiam ser mau agouro. Assim, o doutor pegou uma pedra e arremessou-a contra as duas luzes. Em um segundo, elas saltaram apressadas e desapareceram na lavoura escura.

O dr. Henrique entrou em casa com um sorriso corajoso no rosto.

Cabeças não rolavam tão rápido.

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Paulo Moreira

Brazilian pharmacist in loved with History, Fantasy and Ecofiction. Author of The Blood of the Goddess. I write about nature in poems and fantasy stories.